Este artigo, publiquei-o quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto. Seguidores
14 novembro 2008
A crítica como exercício da inteligência
Este artigo, publiquei-o quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto. 13 novembro 2008
Sim, "Dagoberto" já está "in paradise"
A cópia exibida, em 35mm com Dolby, para um cinema com gente a sair pelo "ladrão", provocou 20 minutos (trata-se de um curta metragem de divertimento e, também, informação, pois o filme faz uma rápida panorâmica sobre os vultos brasileiros das últimas décadas).
Antes de "Dagoberto" começar a narrar a sua trajetória, Moreira, performático, decidiu que o filme deveria ser parido, "comme il faut". E convidou todos os presentes, que estavam se fartando de chopes e salgadinhos, a subirem a escada que leva à entrada do Cinema do Museu e se perfilarem pelas paredes (para se chegar à sala propriamente dita do Cinema do Museu, que fica no Corredor da Vitória, há a necessidade de se descer uma ladeira bem "proporcionada"). O "parto", ainda que ausente um médico obstetra, veio através de uma surpresa, qual seja a de o próprio diretor, Raul Moreira, vestido de noiva e grávida.
A "via-crucis" de Dagoberto é o calvário de um velho Chevette, que pede surrealisticamente a seu último dono que o leve a um ferro-velho para ser desmontado e amassado. O Dagoberto do título é, portanto, o Chevette, que, na sua última "viagem" em vida, a caminho do cadafalso, recorda os seus antigos donos, e através destes, o realizador faz uma espécie de panorâmica dos acontecimentos na política e no comportamento brasileiros dos derradeiros tempos. A voz, portanto, que "comanda" a narrativa, é a voz surrealista do provecto Chevette a ir ao encontro da destruição mas que "pensa", talvez, entrar no paraíso.
Filme de montagem, que introduz na sua estrutura narrativa além das situações em plano "real", imagens de arquivo e animação. Do primeiro dono do Chevette em 1983, o filme acompanha os seus outros compradores e, com eles, registra um certo tipo de comportamento da época abordada, como o rapaz que, a princípio desregrado e amante do "dolce far niente", que se torna um típico yuppie, o padre pedófilo (interpretado com a elegância e a compostura habituais por Lula Meteorango), a moça bonita (aliás a imagem dela no navio, acompanhada de um menino é bem sugestiva).
O único senão que se poderia fazer a "Dagoberto vai ao paraíso" é que as histórias exigiriam uma maior duração para se ter um quadro mais exato da época. Mas a síntese tem mais urgência do que o desdobramento ficcional maior, porque no cinema baiano há a necessidade de se ser sintético por uma questão de sobrevivência, viabilidade e exeqüibilidade.
O mote do filme? Com a palavra Raul Moreira: "Sim, mostrar as transformações do Brasil a partir dos ex-proprietários de Dagoberto e costurá-las com o drama atual de sua existência, que partia do fato de que ele não mais reconhecia o mundo e o mundo muito menos o reconhecia, foi o mote do filme. Para tanto, fundamental era dar uma cara a Dagoberto, quando me veio à idéia de usar um boneco do Topo Giggio, um personagem também fora de tempo, como o próprio Chevette Hatch."
"Dagoberto vai ao paraíso" existiu quase por um milagre de persistência de seu autor, pois segundo ele, "O roteiro foi enviando para participar de um edital da Petrobrás, sem sucesso. E, como a fruta estava ficando madura e caindo do pé, resolvi fazer o filme, ainda que praticamente sem um tostão, levando-se em conta os custos de um curta. A partir de ações quase esquizofrênicas e graças ao apoio de mamãe (Terezinha) e de alguns amigos, entre eles Cássio Sader, Flávio Lopes e o pessoal da Olhar Filmes resolvemos partir para as gravações. Tivemos três fotógrafos: o competente Hans Herald, o preciso Alexandre Andrade e o experimentalista Flávio Lopes. O fiz dispondo basicamente de uma câmera Sony Z1, um refletor pockt, obra de Henrique, da Quanta, dois rebatedores e a velha e imbatível iluminação natural, claro. Com os atores escolhidos, Antônio Fábio, Igor Epifânio, Olga Lama, Tom Valença, Lula Martins, Ricardo Luedy e tantos outros, perfeitos, rodei, em quatro dias, sem que eu carregasse o roteiro nas mãos, pois conhecia o filme de trás para frente. Depois, também em quatro dias, o montamos, graças à habilidade de Cláudio Schwabacher, o mesmo que havia dando o primeiro corte em Eu me Lembro, de Edgard Navarro. Por fim, vieram os efeitos sonoros e música original do mestre Ricardo Luedy."
12 novembro 2008
Últimas fotos de Álvaro Guimarães


O parto mais insólito da história do cinema
Acontecimento inusitado aconteceu quinta passada quando da sessão especial de Dagoberto vai ao paraíso. O jornalista e vestibulando de cineasta Raul Moreira decidiu parir seu próprio filme e, para isso, vestiu-se, comme il faut, de noiva grávida e desgrenhada. Descendo a ladeira que dá acesso ao Cinema do Museu, no Corredor da Vitória, em absoluta nonchalance, ao chegar à entrada da sala exibidora, deitou-se para o trabalho de parto, ainda que algumas pessoas, preocupadas, achassem melhor que o nascimento fosse acompanhado de um médico obstetra. Uma alma caridosa, no entanto, ofereceu seus préstimos e o filme foi parido com dor e satisfação. Como se pode ver na foto que ilustra este post: a mamãe Raul Moreira vê o filho/filme ser retirado de sua, como dizer? barriga. Por não ser mulher, o parto foi cesariano. Uma pequena incisão na barriga, sangue por todos os lados, mas o filme saiu inteiriço e logo foi se alojar na cabine de projeção para ser exibido. A atitude de Raul Moreira deveria ser seguida por todos os cineastas brasileiros.Dagoberto é um velho Chevette que, indo ser desmontado em ferro-velho, conta a história de seus antigos proprietários. E pensa que vai ao paraíso como aquela classe operária de um antigo filme de Elio Petri.
Cliquem na imagem para vê-la maior.
10 novembro 2008
Fazendo uma homenagem a Roberto Pires
Ao lado do produtor Braga Netto, um dos principais produtores do Ciclo Baiano de Cinema (Barravento, de Glauber Rocha, A grande feira, de Roberto Pires, Bahia, por exemplo, de Rex Schindler, e do inacabado O rio das almas perdidas), este bloguista/blogueiro dá algumas palavras após a exibição de A grande feira, durante o Festival Sala de Arte de Cinema (que foi projetado em cópia luminosa). Na oportunidade, antes do longa, apresentado também o documentário O artesão de sonhos, de Paulo Hermida e Petrus Pires (filho de Roberto), que focaliza alguns momentos de um homem vocacionado para fazer filmes e realizar sonhos: Roberto Pires. Nota-se, na foto, que o bloguista está um tanto quanto preocupado com o que está a dizer haja vista os ouvidos parados de Braga Netto (ator em Redenção, o primeiro longa baiano de longa metragem realizado por Pires em 1959).09 novembro 2008
Cinema Baiano (4): Álvaro Guimarães


Pedi a José Umberto, cineasta e escritor (O anjo negro, Revoada...), cujo média-metragem Vôo interrompido, que precisa urgentemente de uma revisão, foi considerado por Álvaro Guimarães o primeiro filme verdadeiramente underground do cinema baiano, que escrevesse um texto sobre Alvinho. Zé não perdeu tempo: sacou logo suas armas afetivas para falar do colega que a Implacável já o levou. E abrindo as devidas e imprescindíveis aspas:
08 novembro 2008
A morte do jornalismo cultural

A foto é do jornalista Sérgio Augusto.
05 novembro 2008
Foto histórica
O artista plástico Ângelo Roberto, um casal de amigos, o velho Tuna Espinheira e Yarinha com o legendário cineasta Luiz Paulinho dos Santos (camisa e barba brancas, casaco azul claro), num encontro histórico durante a última Jornada Internacional de Cinema, que aconteceu em setembro. Paulinho, para quem não sabe, é autor de um curta pioneiro e célebre, da Bahia, Um dia na rampa, e quem concebe Barravento e o começa a dirigir, em 1959, na praia de Buraquinho, perto da de Itapoã, em Salvador, quando, de repente, é demitido pelos produtores, assumindo a direção Glauber Rocha, que reescreve o roteiro com José Telles de Magalhães e muda a concepção da obra cinematográfica. Filme sobre pescadores explorados pelo proprietário da rede, e a desmistificação de suas crenças por um ex-pescador que, de volta da cidade grande, tenta derrubar mitos arraigados para implantar e conscientizar os explorados à rebeldia. Glauber considera, neste filme, o candomblé como o ópio do povo enquanto a concepção de Paulino é de respeito à religião, embora proponha uma mudança mística, enquanto Glauber tenta provocar uma mudança social. O velho Tuna, sente-te pela foto, está contente com o registro do encontro. E mais contente ainda com o lançamento no Multiplex do já consagrado Cascalho, seu primeiro longa metragem.03 novembro 2008
"Dagoberto vai ao paraíso"
O cinema baiano está a produzir aqui e ali, pois, quinta que vem, às 20 horas, no Cinema do Museu, sessão especial de Dagoberto vai ao paraíso, um curta filmado em 35mm de autoria de Raul Moreira. A julgar pela proposta do autor, o filme promete, considerando-se uma certa non chalance na sua personalidade. E o filme não deixa de se constituir num reflexo do seu autor. Ou não? O fato é que, porém, não se pode dizer nada dele sem o ter visto primeiro. Assim, que se espere a quinta para saber o que Dagoberto vai fazer no tal paraíso, um paraíso raulmoreiriano."Tocaia no asfalto", de Roberto Pires
Já que se está a falar de coisas cinematográficas da Bahia, com o lançamento prestigiado de Cascalho, de Tuna Espinheira, e os capítulos do seriado Como nasce o cinema baiano, dominical por natureza, que se veja aqui um thriller importante feito naquela época do chamado Ciclo Baiano de Cinema.Thriller genuinamente baiano realizado em 1962, que aborda o relacionamento dos políticos com a criminalidade e as idiossincrasias de personalidade de um pistoleiro de aluguel, Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, produzido logo após A grande feira, é um filme que pode ser visto em dois planos: no plano de sua narrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro, destaca-se sobremaneira a artesania de Pires, o domínio pelo qual articula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesaria e, aqui, em Tocaia no asfalto, tem-se um exemplo onde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os dois planos sempre devam ser observados em processo de simbiose.
Ainda que uma obra formatada nos moldes de uma linguagem clássica -o que não lhe tira de modo nenhum a qualidade, que se fundamenta na chave narrativa da progressão dramática griffithiana, há, no entanto, uma seqüência que, sem se ter medo de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. É aquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre dos presos num caminhão e tenta intimidá-los com um revólver, ocasionando uma fuga em pleno movimento do veículo, quando vem a morrer o irmão do personagem interpretado por Agildo Ribeiro. A rapidez, com que são expostos os rostos embrutecidos dos pobres diabos que estão no caminhão, tem um ritmo que se assemelha a um touch buscado na concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Esta seqüência é um flash-back, quando Agildo Ribeiro, dançando, sente-se mal e começa a ter pesadelos retroativos.
Assim, Tocaia no asfalto se sobressai pela narrativa impactante que está a serviço do argumento, mas que predomina sobre este. Que versa sobre um pistoleiro contratado para matar um político corrupto (Milton Gaúcho), que, chegando do interior, vai morar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher (Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem político bem intencionado (Geraldo D’El Rey) pretende instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as falcatruas do grupo do político que está na mira do assassino. Mas as reviravoltas do argumento determinam uma contra-ordem e o pistoleiro, na iminência de matar, é avisado que não mais precisa cumprir o trabalho. Apesar de um matador profissional, tem, porém, seus códigos de honra e prefere ir até o fim naquilo para o qual fora incumbido.
Tocaia no asfalto se desenrola em dois ambientes: o ambiente burguês da casa do político, abrangendo as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (Angela Bonatti) com o jovem e promissor parlamentar, e o ambiente pobre do prostíbulo comandado com mão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiro é hospedado, vindo a conhecer uma prostituta pela qual se apaixona. A latere, alguns personagens, como o policial interpretado por Adriano Lisboa, que circula entre os dois ambientes, Antonio Pitanga, outro matador, contratado, desta vez, para matar o outro. Pires, em alguns momentos, através da montagem paralela, tenta mostrar os acontecimentos em perspectiva de simultaneísmo, quando, por exemplo, Agildo e Arassary conversam no Farol de Itapoã.
Notável realizador, Roberto Pires, responsável pelo primeiro longa feito aqui, Redenção (1956-59), pelo seu extremado domínio formal da linguagem, poderia ter ido longe se trabalhasse no exterior, mas as injunções mercadológicas de um cinema caótico, como o brasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recesso forçado. Mas filmes como A grande feira e Tocaia no asfalto bastam para se ter um cineasta.
Não se pode deixar de registrar a funcionalidade da partitura de Remo Usai – que soa como um grito trágico na seqüência final do trem, o bom argumento de Rex Schindler – também produtor, associado a David Singer, e a fotografia de Hélio Silva. E uma pergunta que não se quer calar: por que, com todos os recursos existentes hoje, o cinema baiano não consegue fazer algo parecido com Tocaia no asfalto?
Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires
Ficção/ 35 mm/ 120 min/ 1962/ P&B
Sinopse: A vida e a psicologia dos assassinos de aluguel no Nordeste. A trama do filme se desenrola em Salvador e gira em torno de um político jovem e idealista que os adversários se esforçam por eliminar. Agildo Ribeiro, deixando de lado o humor, adota postura como o matador, vítima da consciência e do emblemático círculo fatal que o envolve, ao lado de Arassary de Oliveira, a namorada.
Argumento: Rex Schindler
Roteiro e Montagem: Roberto Pires
Fotografia: Hélio Silva
Música: Remo Usai
Cenografia: José Teixeira de Araújo
Produtor Executivo: Glauber Rocha
Diretor de Produção: Carlos Lima
Assistente de Direção: Orlando Senna
Assistente de Produção: Carlos Nicolino de Leo
Assistente de Câmera: José Airton
Som: Walter Webb
Fotografia de Cena: Ugo Pedreira
Maquinista-Chefe: Gerolamo Brino
Produção: Rex Schindler, David Singer e Iglu Filmes
Elenco: Agildo Ribeiro, Othon Bastos, Geraldo del Rey, Arassary de Oliveira, Adriano Lisboa, Ângela Bonatti, David Singer, Jurema Pena, Antônio Sampaio, Roberto Ferreira, Maria Anita, Hélio Rodrigues, Milton Gaúcho, Maria Lígia, , Silvio Lamenha, Gerolamo Brino, Cléo Meireles, Leonor Barros, Sonia Noronha.
02 novembro 2008
Vejam o trailer de "Cascalho"
Como nasce o cinema baiano (3)

O capítulo de hoje de Como nasce o cinema baiano é sobre a crítica que tem muito a ver com o advento da cinematografia da terra onde primeiro aportou Thomé de Souza para, aqui, exercer a primeira governança no Brasil.
A considerar que o texto está a ser batido na hora, há sempre o perigo de alguma omissão. A memória, ainda que já fraca, é a propulsora do que se está a ler. E, nesta recordação, vale ressaltar que, em 1958, surge, na imprensa baiana, para mudá-la, um jornal progressista que reúne a elite intelectual da província: o Jornal da Bahia. Nesta época, circa segunda metade dos anos 50, existem quatro jornais diários na cidade: A Tarde, de Simões Filho (morto em 1954 é dirigido pelo jornalista Jorge Calmon), Jornal da Bahia, de João Falcão, O Estado da Bahia e o Diário de Notícias, ambos do condomínio regido por Assis Chateaubriand.
Glauber Rocha é convidado para escrever diariamente um coluna de cinema no Jornal da Bahia. Seus escritos são compilados em O século no cinema. De sua tribuna, procura escrever textos e críticas sobre os filmes que vê na cidade, a estimular sempre o cinema brasileiro e baiano. É célebre a sua apologia a Bahia de Todos os Santos, que Trigueirinho Neto, vindo de São Paulo, realiza em Salvador. O lançamento do filme faz aparecer críticas negativas, mas Rocha o defende com unhas e dentes. No seu estudo sociológico sobre o cinema brasileiro, Brasil em tempo de cinema, Jean-Claude Bernardet analisa a obra de Trigueirinho, que, apesar de suas deficiências estruturais, representa um ponto de vista sobre a realidade social na procura de uma problematização temática, ainda que frustrada.
Glauber Rocha é um crítico atento e, por vezes, generoso, mas, de repente, polêmico, a fazer frente a outros excelentes jornalistas que possuem colunas no Jornal da Bahia, a exemplo de João Ubaldo Ribeiro, cuja estréia na imprensa se dá neste vibrante matutino. No Diário de Notícias quem assina a sua coluna de cinema é Hamilton Correia, colaborador também de Walter da Silveira no Clube de Cinema da Bahia. Vale ressaltar que, numa conversa recente com Hamilton, este disse que, antes de Glauber ter a coluna no Jornal da Bahia, o futuro realizador de Deus e o diabo na terra do sol, publica os seus primeiros escritos no suplemento que Hamilton edita no Diário de Notícias.
José Augusto Berbert de Castro, que morre neste 2008, com uma trajetória de mais de 40 anos no colunismo cinematográfico, é o comentarista de A Tarde. Apaixonado pelo cinema americano, principalmente pela sua época de ouro (e quem não o é?), Berbert, como é chamado, também incentiva o cinema baiano, com suas notas e entrevistas.
Crê-se que quem escreve em O Estado da Bahia é Milton Chagas e, de vez em quando, José Olymphio da Rocha. Na Rádio Excelsior, pontifica, com sua voz grave, Lourival Oliveira, com seu programa semanal Falando de cinema e sem fazer fita, que é divido em vários quadros: os comentários dos filmes da semana, trilhas sonoras, respostas às perguntas dos ouvintes, etc. Lourival, que trabalha hoje no Irdeb, conta-me que tem todas as perguntas e, entre elas, uma do punho deste bloguista. Pretende publicar um livro com o material que guarda, a sete chaves, de Falando de cinema e sem fazer fita. Hamilton Correia escreve para um programa de rádio, mas não o apresenta. Há, e a memória se faz aqui presente com mais intensidade, no programa de Lourival, toda semana, sorteios que oferecem entradas para as salas exibidoras. O bloguista, uma vez, é sorteado, e porque ainda um menino, vai buscar o seu ingresso em mãos. E conhece o legendário Lourival Oliveira, mas este não liga para o garoto apaixonado pelas coisas do cinema. Somente mais tarde, já com coluna em jornal da cidade (Tribuna da Bahia) é que vem a conhecer Lourival e com ele travar relações. Para não esquecer: o crítico radiofônico, nos anos 70, apresenta um programa de cinema na Tv Aratu num programa vespertino dirigido por Teresa Fernandez.
Orlando Senna é outro crítico que publica artigos na imprensa baiana, algumas vezes sob o pseudônimo de Fausto Ferreira. Chega a assinar uma coluna dominical do jornal I.C. Shopping News. Com a ida de Glauber para o Rio, ou mesmo antes, quando se entrega de corpo e alma às filmagens de seu primeiro longa, Barravento (1959/1962), José Gorender assume a sua coluna no Jornal da Bahia sob o pseudônimo de Jeronimo de Almeida. Se José Augusto Berbert de Castro é mais cronista dos filmes, Almeida exerce o que se costuma chamar de crítica cinematográfica até que, com o advento do cruel Ato Institucional número 5 (13 de dezembro de 1968), Gorender (irmão de Jacob), comunista de boa cepa, é perseguido, sendo substituído, na coluna, por José Umberto, então um vestibulando de cineasta com alguns curtas na bagagem (Perâmbulo, O doce amargo, este em parceria com André Luiz de Oliveira, Vôo interrompido, que segundo Álvaro Guimarães é o primeiro filme realmente marginal do cinema baiano - aliás, um capítulo dessas memórias é dedicado ao Surto Underground Baiano, que se dá na segunda metade dos anos 60, findo o Ciclo.
Em outubro de 1969, surge um novo jornal, a Tribuna da Bahia (no qual o bloguista tem uma coluna desde agosto de 1974), e Walter da Silveira é chamado por Quintino de Carvalho, o redator-chefe, para organizar um conselho de cinema nos moldes do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã.
A Tribuna da Bahia, primeiro jornal baiano impresso em offset (um processo planográfico cuja essência consiste em repulsão entre água e gordura (tinta gordurosa). O nome off-set - fora do lugar - vem do fato da impressão ser indireta, ou seja, a tinta passa por um cilindro intermediário, antes de atingir a superfície), é um sucesso e revoluciona a imprensa da terra (poucos anos depois A Tarde, por causa da sua concorrência, vê-se obrigado a adotar o offset já que tem uma impressão antiquada), tem uma diagramação original, com fotos imensas, revelando-se numa novidade.
Walter da Silveira convida alguns jovens que fazem o seu curso de cinema da UFBa para que tomem parte do conselho de cinema. Os único veteranos, além do comandante, são Hamilton Correira e Guido Araújo (que volta há poucos anos de sua jornada na Tchecoslováquia, onde passa quase dez anos). Os outros se iniciam na crítica cinematográfica: Geraldo Machado, Jairo Faria Goes, José Umberto (que concilia a coluna no Jornal da Bahia com a da Tribuna, mas a adotar, nesta, o pseudônimo de Freire Dias). Com a morte de Walter da Silveira, o conselho se desintegra, restando apenas, duas ou três vezes por semana, Guido Araújo.
Cada integrante do conselho tem uma coluna por semana, e às sextas, como faz o Jornal do Brasil, um filme lançado é escolhido para, página inteira, ser analisado por todos os seus membros.
Mas se chega a um ponto adiantado no propósito desse seriado. Basta por hoje e bom domingo a todos que tiveram a paciência de ler estas mal traçadas.
30 outubro 2008
"Cascalho": a poesia da crueldade
Obra de teor realista, baseada em livro homônimo de Herberto Sales, Cascalho, no entanto, tem seu fecho numa dimensão onírica e poética, quando o garimpeiro, que morre no desabamento das minas pelo temporal imprevisto, aparece todo galante e fagueiro, a entrar num salão e a festejar uma bela garota com a qual executa uma dança. Tuna Espinheira é feliz no fecho de seu filme, neste desvio de tom, o que faz acrescentar um halo poético numa obra de tonalidades cruas e realísticas. A execução da dita seqüência se faz em câmara lenta, e a iluminação (de Luís Abramo) dá os toques necessários para estabelecer a atmosfera de sonho. Que é favorecida também pela aplicada direção de arte de Moacyr Gramacho.Vencedor do Prêmio Fernando Cony Campos, patrocinado pelo governo do estado da Bahia, que ofereceu recursos mínimos para a feitura de um longa metragem, Cascalho já está pronto desde 2004, mas somente agora, quatro anos depois, e depois de muita luta, é que Tuna Espinheira preencheu todos os requisitos para a sua exibição em circuito comercial. Para entrar nas melhores salas do mercado exibidor, há a necessidade do som Dolby digital.
Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revela em Cascalho a sua influência no registro realista tão cara ao documentário. Filmado in loco, no esplendor do décor de Andaraí, o filme se desdobra para contar uma história de sofrimento e dor sob a égide da brutalidade dos coronéis, que controlam tudo e exploram os que se aventuram no garimpo. Nem os poderes constituídos, como o juiz e o promotor, podem fazer frente à sua sanha autoritária para subjugar a gente humilde.
O início de Cascalho, com os garimpeiros a andar pelas imensas pedras em fila indiana, dá a idéia da dimensão e riqueza paisagísticas da região, como se aqueles homens fossem escravos e estivessem a construir uma pirâmide. O registro cinematográfico de Tuna Espinheira, a revelar sua formação de documentarista, procura uma fabulação que faz emergir a truculência daqueles que a tudo controlam e a luta desesperada dos garimpeiros para extrair do cascalho uma porção de sobrevivência.
A reconstituição de época, considerando que a ação do filme se passa na década de 30, ainda que os parcos recursos disponíveis, é satisfatória, quer do ponto de vista cenográfico como, também, nos figurinos, principalmente na seqüência do enterro. Os planos noturnos que mostram a rotina dos garimpeiros também conseguem imprimir uma sensação de esmagamento e ao mesmo tempo de uma poesia da gente simples com sua linguajar próprio, com a sua maneira de expressar não somente o sentimento como também a sua dor.
A ação se localiza no crepúsculo de uma época de ouro, quando em Andaraí se extraia diamantes e carbonatos, a enriquecer os donos do poder da região, os coronéis, e a escravizar a população de garimpeiros, que, iludidos pela possibilidade de encontrar as pedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeiros escravos da ganância e da ambição daqueles que controlavam a localidade. O personagem maior do filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura dos coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico, conheceu o drama dos garimpeiros e procurou registrá-lo no célebre romance do qual Tuna Espinheira, em adaptação livre, extraiu o seu filme.
Othon Bastos é o coronel que manda em tudo, insensível e cruel, assim como seus acólitos, subservientes, os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempo todo como a expelir o demônio interior), Harildo Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensa que pode mudar alguma coisa, e, difamado, é posto a correr da cidade após um diálogo que revela o conformismo do juiz interpretado por Fernando Neves. Gildásio Leite (o grande ator dos palcos baianos de outrora - quem se lembra dele em O cão siamês de Alzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro, e Jorge Coutinho, a personagem mais carismática de Cascalho, é um cruel capataz de Bastos, homem ambíguo e capaz de tudo. Outros intérpretes: Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goes e, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberante Maria Rosa Espinheira.
Esta não é a primeira versão do livro de Herberto Sales. Há uma de autoria de um estrangeiro, Leo Marten, um tcheco que após realizar vários filmes em Praga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar, 1941, Almas adversas, 1949, Jardim do pecado, 1946, entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950, e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira, Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.
Cascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitória para o cinema baiano. Segundo José Umberto, cineasta (O anjo negro, Revoada...), "Cascalho é o cinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Um dia na rampa - um cinema popular. Eis o eixo: sentimos na imagem o sotaque do povo. Não faz nada mal relembrarmos os princípios éticos e poéticos de Brecht. Brecht buscou alento sobretudo no teatro catequista da Idade Média. Uma arte edificante. Que toma partido: o partido da gente simples, ofendida e humilhada como as personagens de Dostoievski. Tuna quis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiel a si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à "globalização""!). Não. É uma fita simples, como a filmografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Um discurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vem uma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalho de Salles, BA, Os Corumbas, Amando Fontes, SE e O Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba, rapaz! E teve muitas conseqüências na cultura brasileira. Tivemos Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Formação Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior. Essas obras montaram a modernidade. Deram sinais preciosos de interpretação de uma Nação que descobria a modernidade com uma ditadura tupiniquim. Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão."
29 outubro 2008
"A mulher do tenente francês"

Um dos melhores filmes da década de 80 é, sem dúvida, A mulher do tenente francês (The french lieutenant's woman, 1981), de Karel Reisz (notável realizador inglês, que dirigiu, entre outros, Tudo começou no sábado [Saturday night and sunday morning], 1960, filme que deu a conhecer o extraordinário Albert Finney, e é um dos mais expressivos do free cinema - a nouvelle vague britânica, Isadora, com Vanessa Redgrave na pele da famosa dançarina, A noite tudo encobre [Night must fall, 1964], fita de terror psicológico impressionante, com Finney e Mona Washbourne - a criada do Professor Higgins em My fair lady), obra de metalinguagem que reflete sobre o processo de criação no cinema, com interpretação inexcedível de Meryl Streep (cuja interpretação neste bate forte com a de A escolha de Sofia). Em A mulher do tenente francês, a ação tem início em 1867, numa pequena cidade inglesa, quando um marinheiro seduz e abandona uma jovem. Mais tarde, um aristocrata (Jeromy Irons) rompe o noivado com uma mulher de sua classe pela moça seduzida (Meryl Streep). E é aí que Reisz, com roteiro do célebre Harold Pinter, joga com a linguagem do cinema, o tempo, o espaço. Um século depois do ocorrido, começa a filmagem desse caso e a estrutura narrativa de A mulher do tenente francês alterna o que aconteceu no passado (o filme que está sendo feito) e o presente das filmagens. No fecho, há o final do filme dentro do filme e o que acontece com os dois protagonistas, que também se apaixonam (Jeromy Irons faz o tenente e o ator que o interpreta, assim com La Streep). Obra de um rigor extraordinário que dá prova da competência de Reisz (1926/2002) como competente realizador cinematográfico. Baseado em livro de John Fowles.
Cinematografado pelo genial artista da luz Freddie Francis.
"Morangos silvestres" é o melhor Bergman

Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman, ganhou disparado como o melhor filme de Ingmar Bergman na enquete promovida por este blog. Dos 46 votantes, 21 (45%) escolheram esta incontestável obra-prima do cinema, deixando no caminho outras filmes notáveis como Persona (segundo lugar, com 7 votos e 15%), O sétimo selo (terceiro, com 5 e 10%), que empatou com Gritos e sussurros. A hora do lobo, A paixão de Ana e Monica e o desejo, obras também fundamentais receberam um tracinho, ou seja, nenhum voto, porque talvez filmes pouco vistos e de mais difícil acesso. Creio que A paixão de Ana não tem cópia em DVD. Vi várias vezes na ocasião de seu lançamento nos já longínquos anos 70, quando minha barba, hoje branca, era preta. E uma vez no Telecine Classic, ocasião que o gravei em VHS, que o tempo, implacável, destruiu-o com mofo e constipações de várias espécies. Paulo Francis considerava A paixão de Ana não somente o melhor Bergman como, também, o melhor filme de sua vida. Votei em Morangos silvestres, que revi recentemente, e o considero uma obra fundamental. Na imagem, a belíssima Ingrid Thulin (pela qual, platonicamente, fui apaixonado), o extraordinário Victor Sjostrom (que morreu, como numa espécie de premonição, logo após as filmagens deste filme - e era um dos grandes cineastas suecos, autor de A carroça fantasma, que Bergman possuia cópia em casa para ver sempre), e, no banco de trás, Bibi Andersson, com seus amigos de jornada.
