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14 novembro 2008

A crítica como exercício da inteligência

Este artigo, publiquei-o quando do lançamento de Um filme por dia, coletânea de críticas do célebre crítico Antonio Moniz Vianna organizada por Ruy Castro. O texto vai como saiu. Sou do tempo dele, quando ia comprar, aqui em Salvador, o Correio da Manhã que somente era vendido na Praça Municipal. Província tranquila, saia de meu bairro, Nazaré, e ia a pé - uma distância considerável - à citada praça para adquirir jornais do Rio e de São Paulo. No Correio da Manhã, pontificava a figura grave de Moniz Vianna, que foi quem me ensinou a apreciar um travelling em Robert Aldrich. Aliás, a bem dizer, o pouco que sei sobre cinema - e sei muito pouco - aprendi indo ao cinema e lendo críticas como as de Moniz Vianna. Sou um autodidata, portanto. E também comprando livros sobre a arte do filme, a procurar, neles, o conhecimento necessário à apreciação estética de uma obra cinematográfica. Mas vamos deixar de delongas para ir direto ao texto.
"A aparição em livro da reunião das críticas de Antonio Moniz Vianna se torna, desde já, o acontecimento editorial, em relação às obras que tratam do cinema, mais importante do ano, pois se trata de uma coletânea que contém a quintessência do maior crítico cinematográfico de todos os tempos, que pontificou, diariamente, no Correio da Manhã, de 1946 e 1973. Abandonou a crítica neste ano, quando da morte de John Ford, seu cineasta favorito, escrevendo logo um texto e se despedindo dos leitores. Antonio Moniz Vianna, no entanto, acaba de completar 80 anos, com a lucidez e a consciência inabaláveis. Mas há três décadas preferiu o exílio voluntário de seu apartamento em Copacabana. Na época de sua saída, decepcionado com a crise criativa do cinema contemporâneo, não viu mais razão de continuar na labuta diária da crítica. Para ele, o apogeu do cinema se deu entre 1912 e 1962, acontecendo, a partir daí, o seu perigeu. Pertenceu à geração dos grandes críticos, homens cultos, preparados, dedicados, com profundo amor pelo cinema, a exemplo de Walter da Silveira, aqui na Bahia, Francisco Luiz de Almeida Salles, Rubem Biáfora e Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, entre muitos outros. Moniz, no entanto, ao contrário de Walter, que se poderia chamar de ensaísta – e um grande ensaísta de cinema, diga-se de passagem, era um verdadeiro crítico. O título do livro editado pela Companhia das Letras não poderia ser mais exato e significativo: Um filme por dia, porque Moniz Vianna, antes de tudo, era um crítico do batente diuturno, que copiava as fichas técnicas dos filmes – completíssimas – no escuro da sala de projeção com uma caneta na mão.
(Antonio Moniz Vianna nasce em Salvador em 1924, mas desde os 11 anos se transfere para o Rio de Janeiro, e, mais tarde, antes do jornalismo, ingressa na Faculdade Nacional de Medicina. A partir de 1946 começa a assinar críticas de cinema no Correio da Manhã, vindo, nos anos 60, a ocupar, neste prestigioso matutino carioca, o cargo importante de redator-chefe. Entre 1956 e 1965, é diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, quando organiza importantes e inéditas mostras (para a época) dos cinemas americano, francês, italiano, e russo, que, até hoje, para aqueles que tiveram a sorte de vê-las, ainda se encontram guardadas na memória. Moniz, por exemplo, trouxe, pela primeira vez, em 1958, uma cópia de Cidadão Kane ao Brasil, apesar dessa obra-prima de Orson Welles ser de 1941. Vieram também cópias de obras essenciais como as de Griffith (O nascimento de uma nação, Intolerância), os primeiros filmes de Méliès e Lumière, as obras fundamentais do neo-realismo italiano e do realismo poético francês, além dos filmes da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin, Dovjenko, Dziga Vertov, etc). Em 1965, organizou o maior festival de cinema que o Brasil já conheceu: o Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, cujo júri, para se ter uma idéia, entre outros, era composto por monstros sagrados como Fritz Lang, Joseph Von Stenberg, Vincente Minnelli. Nunca, em momento algum de nossa história, houve, no país, festival de tal envergadura).
Das seis mil e tantas colunas que, segundo o crítico Paulo Perdigão, foram escritas pelo mestre, apenas setenta e poucas, após processo de seleção rigoroso efetuado por Ruy Castro e pelo neto do autor, Eduardo Moniz Vianna, constam de Um filme por dia, obra imprescindível e obrigatória que nenhuma pessoa que se queira cinéfila pode deixar de adquirir. Crítico de choque, de estilo admirável – somente comparável aos grandes escritores, Moniz Vianna, apesar dos insistentes apelos dos amigos e de editoras, sempre se recusou a publicar seus escritos. Uma de suas filhas, Isadora, chegou, há alguns anos atrás, a lhe pedir, mas o pai não lhe atendeu. Quem conseguiu o grande feito foi seu neto, Eduardo, que, afinal, entrando no arquivo secreto do crítico, e ajudado pelo especialista Ruy Castro, selecionou o material. Pena que a publicação abarque apenas um por cento do que Moniz escreveu por toda a vida. Mas o que se encontra em Um filme por dia é caviar, delicatessen em matéria de crítica cinematográfica.
(Em plena adolescência, em 1964, aos 14 anos, conheci Antonio Moniz Vianna através das páginas do Correio da Manhã. Os jornais do eixo Rio-São Paulo, naquela época, somente eram vendidos na Praça Municipal na Banca do Careca e, aos domingos, religiosamente, comprava o Correio da Manhã para ler Moniz Vianna, principalmente as suas completas filmografias que eram publicadas no Quarto Caderno – o maior suplemento cultural do Brasil, batendo, mesmo, o do Estado de São Paulo e o afamado SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil). Ficava estupefato (esta, a palavra) como um filme podia ser dissecado com tanta erudição por um crítico. Admirava, em Moniz Vianna, o seu imenso conhecimento do assunto e, principalmente, a maneira dele escrever, o seu estilo, admirável. Moniz, como disse um amigo, e discípulo, Paulo Perdigão, era um crítico de choque).
Moniz Vianna, respeitadíssimo em sua época, era, por outro lado, marginalizado pelos cinemanovistas. Glauber Rocha tinha por ele grande admiração, mas se aborreceu com a sua crítica demolidora a Terra em transe, que Moniz espinafrou – aliás sem razão, pois se trata do melhor filme brasileiro de todos os tempos. O grande crítico, porém, tinha lá suas idiossincrasias, predileções, manias. Adorava John Ford a ponto de deixar a coluna diária no Correio da Manhã assim que soube de seu falecimento. “O cinema acabou”, disse, na época, o polêmico articulista que além de crítico era, também, redator-chefe do jornal por longos anos.
(A crítica de cinema, hoje, como praticada por Moniz Vianna, Rubem Biáfora Paulo Emílio Salles Gomes, Cyro Siqueira, Walter da Silveira, José Lino Grunewald, Paulo Perdigão, entre muitos outros, não mais se exercita nos tempos que correm. O que se vê, atualmente, são resenhas e comentários, a maioria delas vinculada à propaganda dos últimos lançamentos da indústria cultural cinematográfica made in Hollywood. Os estudos mais aprofundados sobre a arte do filme se encontram nos calhamaços das dissertações e teses de mestrados e doutorados e, mais recentemente, no espaço virtual. Os jornais, decadentes, não se interessam a dar espaço para reflexões sobre o cinema, preferindo textos que funcionem como guias de consumo. Mas, neste particular, a internet tem oferecido a oportunidade para o aparecimento de sites comprometidos com a reflexão teórica. De qualquer maneira e de qualquer forma, o fato é que, com a decadência da cultura humanística, os acadêmicos-críticos, ou os críticos acadêmicos, não possuem mais um estilo atraente na exposição da matéria, condicionados que ficam pelos grilhões da linguagem da academia, uma verdadeira camisa-de-força que impede o livre exercício do pensamento livre de amarras. Vale transcrever, aqui, o que escreveu o jornalista Getúlio Bittencourt sobre Antonio Moniz Vianna: “Em quantidade, apenas o americano Bosley Crowther, do The New York Times, se apresenta com tamanho similar (ambos somam 28 anos de ofício cada). Em termos de qualidade, será preciso buscar nomes na França para encontrar, dispersos, predicados comuns em Moniz Vianna: André Bazin pela profundidade de análise, Georges Sadoul pelo conhecimento enciclopédico. Já na elegância do texto, só se pode comparar Moniz Vianna com grandes escritores que se dedicaram ocasionalmente à crítica de cinema, como o argentino Jorge Luis Borges na revista Sur, o inglês Graham Greene no The Spectator de Londres, o americano James Agee na revista Time, o colombiano Gabriel García Márquez no El Espectador de Cartagena”).
Com o desaparecimento dos suplementos culturais, a crítica de cinema foi substituída pelos comentários e resenhas, assim como a literária, de rodapé, também já não mais existe. O jornalismo dito cultural, hoje, está muito atrelado ao mercado, perdendo, com isso, a independência. Na Bahia, por exemplo, não existe crítica de arte. Os artistas querem ser badalados, elogiados, tietados, e quando alguém, por acaso, os critica há, sempre, uma indisposição, uma vontade de nomear aquele que diz que o rei está nu como um maledicente. Moniz Vianna foi um bravo guerreiro e um crítico como ele já não mais existe na sociedade contemporânea ou, como se quer agora, na contemporaneidade. Os escritos de sua autoria reunidos em Um filme por dia revelam não apenas um imenso estilista e um erudito nas coisas do cinema, mas refletem, também, o espírito de uma época. Que o vento, já saturado, levou-a para sempre. Resta, agora, a recusa à banalidade ululante da cultura ou a aceitação passiva, mascarada de uma alegria debilóide, a justificar que os tempos pós-modernos abrigam um contingente maciço da dementia precox".

13 novembro 2008

Sim, "Dagoberto" já está "in paradise"

Transcrevo o que escrevi hoje, 13 de novembro em minha coluna da Tribuna da Bahia.
"Lançado quinta passada no Cinema do Museu, "Dagoberto vai ao paraíso", de Raul Moreira, assinala a estréia na direção cinematográfica desse jornalista irrecuperável, mas, desde logo, disposto a jogar na tela o seu humor e a sua “nonchalance”, que caracterizam a sua esfuziante personalidade.

A cópia exibida, em 35mm com Dolby, para um cinema com gente a sair pelo "ladrão", provocou 20 minutos (trata-se de um curta metragem de divertimento e, também, informação, pois o filme faz uma rápida panorâmica sobre os vultos brasileiros das últimas décadas).

Antes de "Dagoberto" começar a narrar a sua trajetória, Moreira, performático, decidiu que o filme deveria ser parido, "comme il faut". E convidou todos os presentes, que estavam se fartando de chopes e salgadinhos, a subirem a escada que leva à entrada do Cinema do Museu e se perfilarem pelas paredes (para se chegar à sala propriamente dita do Cinema do Museu, que fica no Corredor da Vitória, há a necessidade de se descer uma ladeira bem "proporcionada"). O "parto", ainda que ausente um médico obstetra, veio através de uma surpresa, qual seja a de o próprio diretor, Raul Moreira, vestido de noiva e grávida.

A "via-crucis" de Dagoberto é o calvário de um velho Chevette, que pede surrealisticamente a seu último dono que o leve a um ferro-velho para ser desmontado e amassado. O Dagoberto do título é, portanto, o Chevette, que, na sua última "viagem" em vida, a caminho do cadafalso, recorda os seus antigos donos, e através destes, o realizador faz uma espécie de panorâmica dos acontecimentos na política e no comportamento brasileiros dos derradeiros tempos. A voz, portanto, que "comanda" a narrativa, é a voz surrealista do provecto Chevette a ir ao encontro da destruição mas que "pensa", talvez, entrar no paraíso.

Filme de montagem, que introduz na sua estrutura narrativa além das situações em plano "real", imagens de arquivo e animação. Do primeiro dono do Chevette em 1983, o filme acompanha os seus outros compradores e, com eles, registra um certo tipo de comportamento da época abordada, como o rapaz que, a princípio desregrado e amante do "dolce far niente", que se torna um típico yuppie, o padre pedófilo (interpretado com a elegância e a compostura habituais por Lula Meteorango), a moça bonita (aliás a imagem dela no navio, acompanhada de um menino é bem sugestiva).

O único senão que se poderia fazer a "Dagoberto vai ao paraíso" é que as histórias exigiriam uma maior duração para se ter um quadro mais exato da época. Mas a síntese tem mais urgência do que o desdobramento ficcional maior, porque no cinema baiano há a necessidade de se ser sintético por uma questão de sobrevivência, viabilidade e exeqüibilidade.

O mote do filme? Com a palavra Raul Moreira: "Sim, mostrar as transformações do Brasil a partir dos ex-proprietários de Dagoberto e costurá-las com o drama atual de sua existência, que partia do fato de que ele não mais reconhecia o mundo e o mundo muito menos o reconhecia, foi o mote do filme. Para tanto, fundamental era dar uma cara a Dagoberto, quando me veio à idéia de usar um boneco do Topo Giggio, um personagem também fora de tempo, como o próprio Chevette Hatch."

"Dagoberto vai ao paraíso" existiu quase por um milagre de persistência de seu autor, pois segundo ele, "O roteiro foi enviando para participar de um edital da Petrobrás, sem sucesso. E, como a fruta estava ficando madura e caindo do pé, resolvi fazer o filme, ainda que praticamente sem um tostão, levando-se em conta os custos de um curta. A partir de ações quase esquizofrênicas e graças ao apoio de mamãe (Terezinha) e de alguns amigos, entre eles Cássio Sader, Flávio Lopes e o pessoal da Olhar Filmes resolvemos partir para as gravações. Tivemos três fotógrafos: o competente Hans Herald, o preciso Alexandre Andrade e o experimentalista Flávio Lopes. O fiz dispondo basicamente de uma câmera Sony Z1, um refletor pockt, obra de Henrique, da Quanta, dois rebatedores e a velha e imbatível iluminação natural, claro. Com os atores escolhidos, Antônio Fábio, Igor Epifânio, Olga Lama, Tom Valença, Lula Martins, Ricardo Luedy e tantos outros, perfeitos, rodei, em quatro dias, sem que eu carregasse o roteiro nas mãos, pois conhecia o filme de trás para frente. Depois, também em quatro dias, o montamos, graças à habilidade de Cláudio Schwabacher, o mesmo que havia dando o primeiro corte em Eu me Lembro, de Edgard Navarro. Por fim, vieram os efeitos sonoros e música original do mestre Ricardo Luedy."
Que "Dagoberto vai ao paraíso" tenha mais exibição pelo circuito alternativo da cidade. Há um sentido de humor que parece desaparecido do cinema baiano contemporâneo. Graça e espontaneidade.

12 novembro 2008

Últimas fotos de Álvaro Guimarães



Dois momentos de Álvaro Guimarães em seu retiro espiritual em Arraial D'Ajuda um ano antes de sua morte ocorrida no último dia 15 de outubro, aos 65 anos. Na primeira, ele conversa com Marcos Pierry, que foi a Porto Seguro procurá-lo para realizar (juntamente com Júlia Centurião e Ajurimar Sales) o doc. Marginal My Friend, que deve ser fonte de muitas informações sobre o Underground baiano e brasileiro. Vale dizer que a cópia de Caveira, my friend está sendo restaurada pelo Departamento de Audiovisual da Fundação Cultural da Bahia (DIMAS).

O parto mais insólito da história do cinema

Acontecimento inusitado aconteceu quinta passada quando da sessão especial de Dagoberto vai ao paraíso. O jornalista e vestibulando de cineasta Raul Moreira decidiu parir seu próprio filme e, para isso, vestiu-se, comme il faut, de noiva grávida e desgrenhada. Descendo a ladeira que dá acesso ao Cinema do Museu, no Corredor da Vitória, em absoluta nonchalance, ao chegar à entrada da sala exibidora, deitou-se para o trabalho de parto, ainda que algumas pessoas, preocupadas, achassem melhor que o nascimento fosse acompanhado de um médico obstetra. Uma alma caridosa, no entanto, ofereceu seus préstimos e o filme foi parido com dor e satisfação. Como se pode ver na foto que ilustra este post: a mamãe Raul Moreira vê o filho/filme ser retirado de sua, como dizer? barriga. Por não ser mulher, o parto foi cesariano. Uma pequena incisão na barriga, sangue por todos os lados, mas o filme saiu inteiriço e logo foi se alojar na cabine de projeção para ser exibido. A atitude de Raul Moreira deveria ser seguida por todos os cineastas brasileiros.

Dagoberto é um velho Chevette que, indo ser desmontado em ferro-velho, conta a história de seus antigos proprietários. E pensa que vai ao paraíso como aquela classe operária de um antigo filme de Elio Petri.

Cliquem na imagem para vê-la maior.

10 novembro 2008

Fazendo uma homenagem a Roberto Pires

Ao lado do produtor Braga Netto, um dos principais produtores do Ciclo Baiano de Cinema (Barravento, de Glauber Rocha, A grande feira, de Roberto Pires, Bahia, por exemplo, de Rex Schindler, e do inacabado O rio das almas perdidas), este bloguista/blogueiro dá algumas palavras após a exibição de A grande feira, durante o Festival Sala de Arte de Cinema (que foi projetado em cópia luminosa). Na oportunidade, antes do longa, apresentado também o documentário O artesão de sonhos, de Paulo Hermida e Petrus Pires (filho de Roberto), que focaliza alguns momentos de um homem vocacionado para fazer filmes e realizar sonhos: Roberto Pires. Nota-se, na foto, que o bloguista está um tanto quanto preocupado com o que está a dizer haja vista os ouvidos parados de Braga Netto (ator em Redenção, o primeiro longa baiano de longa metragem realizado por Pires em 1959).

09 novembro 2008

Cinema Baiano (4): Álvaro Guimarães



O seriado Como nasce o cinema baiano continua, mas vai apenas mudar de título. Deste domingo em diante, o título é Cinema Baiano: o que vem a seguir é o assunto. Por exemplo, Cinema Baiano (8): O surto underground, Cinema Baiano (16): o superoitismo dos anos 70 e as jornadas, etc. Hoje, já no quarto capítulo, o post é dedicado a Álvaro Guimarães, que morreu no último dia 14 de outubro em Arraial D'Ajuda, lugarejo perto de Porto Seguro para onde se retirara nos últimos anos de sua vida. Homem de mil instrumentos, caracterizava-se pelo imenso conhecimento das artes em geral. Seus textos de estética teatral, publicados no Suplemento Dominical do Diário de Notícias (Salvador), são irrepreensíveis, que revelam o pleno domínio de Alvinho (como era carinhosamente chamado) da literatura dramática. No teatro soteropolitano, dirigiu montagens que ficaram célebres, a exemplo de Uma obra de governo, baseado em Dias Gomes, que depois teria o texto desmembrado na série O Bem Amado, da Globo, com Paulo Gracindo na pele do prefeito Odorico Paraguassú. Uma obra de governo, porém, era uma peça com uma mise-en-scène incendiária, um teatro quase de agressão e de propósitos desestruturais. No Rio de Janeiro, entre muitas outras, montou Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues. Segundo Caetano Veloso, em escrito quando da morte de Álvaro Guimarães, este foi o responsável por ele ter se iniciado na música. Álvaro o convidou para fazer a parte musical de algumas peças, assim como a Maria Bethânia. No cinema, apenas dois filmes: o underground Caveira, my friend (1969), e, antes, uma experiência curtametragista de certo encanto poético: Moleques de rua (1962). Mas já tinha se iniciado no set cinematográfico desde que Glauber Rocha dirigia, em 1959, Barravento, onde funcionou como seu aplicado assistente de direção (perdeu-se, com sua morte, um depoimento valioso sobre a verdade do golpe aplicado pelos produtores na derrubada de Luis Paulino dos Santos para a ascenção glauberiana), assim como assistente de direção e diretor de arte de Menino de engenho, de Walter Lima Junior, baseado no célebre romance de José Lins do Rêgo. Entre outros filmes. Caveira, my friend, exibido no Festival de Brasília em 1969, e porque proibido pela censura, teve sua cópía queimada na Praça dos Três Poderes como protesto. Vivia-se o clima asfixiante do Ato Institucional número 5. Mais ou menos da mesma época é Meteorango Kid, o herói intergalático, de André Luiz Oliveira, filme underground que apareceu nos rastros de O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla e logo foi alçado à condição de obra cult do underground brasileiro ou, como alguns gostam de chamar, do Cinema Marginal.

Pedi a José Umberto, cineasta e escritor (O anjo negro, Revoada...), cujo média-metragem Vôo interrompido, que precisa urgentemente de uma revisão, foi considerado por Álvaro Guimarães o primeiro filme verdadeiramente underground do cinema baiano, que escrevesse um texto sobre Alvinho. Zé não perdeu tempo: sacou logo suas armas afetivas para falar do colega que a Implacável já o levou. E abrindo as devidas e imprescindíveis aspas:

"Alvinho é um renascentista tupiniquim. Cultivou o teatro em vida; o cinema, foi a necessidade súbita de criar; sempre.
Sempre tive Álvaro Guimarães na conta e em alta, no meu coração. Logo, sou suspeito de falar dele. Mas insisto, por dever e por saudade.
O talento lhe foi inato com precocidade. Embora um intelectual de base sólida, com fúria poética na camada visceral de ser. Figura de fino trato: rapaz bonito, franzino e baiano de cepa.
Um rebelde romântico na linha de exílio perpétuo.
Alvinho estava sempre acima do cotidiano.
Não conheci o seu curta metragem Meninos de rua. Fez esse filme quando também escrevia sobre estética teatral no Suplemento Dominical do DN. Eu lia essas coisas ainda no Clube de Cinema de Feira de Santana, quando passou por lá a Caravana da cultura de Paschoal Carlos Magno. E o Péricles Cunha era o meu diretor no Centro Popular de Cultura do Auto de Zé da Silva.
Falo dessas coisas por que o Alvinho tava por dentro de tudo isso.
E quando ele entrava numa coisa - entrava de corpo-e-alma unificados. Assim era o rapaz, da Barra chique.
Quando ele criou o jornal udigrudi Flores do mal, logo me chamou pra escrever. Sonhos de ouro em vidas de chumbo grosso. Alvinho teve atitude heróica enfrentando a ditadura com as flores e a plástica do Lácio. Um liberador de energia: vanguarda por amor puro ao próximo - assim a praxis de Álvaro Guimarães.
E fora um doador de si: produziu Caveira, my friend (chamava-se originalmente Os Assaltantes) com a grana de uma herança familiar. E, depois, incinerou a fita na Praça dos 3 Poderes, em Brasília.
Não suportou a podridão; - Hamlet a transcendentou.
Mas a vida, para ele, é um dádiva. Senão, uma delícia de guerra.
Alvinho esteve à frente. Quem não percebeu... perdeu a garra de reconhecer coisa-rara-de-existir.
"Adeus, meu canto", escreveu o bardo romântico contestador Castro Alves, seu conterrâneo de alma e atavismo .
Zé Umberto


08 novembro 2008

A morte do jornalismo cultural


Não há dúvida da decadência imensa do jornalismo contemporâneo, da regressão que se abateu sobre a imprensa, principalmente no jornalismo cultural. Sou do tempo em que lia o Quarto Caderno do Correio da Manhã, quando, na redação deste, pontificavam, como num Petit Trianon, homens e sábios como Otto Maria Carpeaux, Antonio Houaiss, Cony, Moacyr Werneck de Castro, Paulo Francis, entre outros. A entrevista que Sérgio Augusto concedeu ao site Digestivo Cultural é leitura obrigatória e que bem reflete o caos da chamada contemporaneidade. Está neste link: http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10


Leio Sérgio Augusto (companheiro de geração do saudoso Paulo Perdigão) desde os tempos em que escrevia no Jornal do Brasil, fazendo parte do Conselho de Cinema, que se reunia toda sexta para criticar determinado filme da semana (naquele época toda semana tinha um filme a respeitar), e que era composto (salvo omissão da memória) por Alex Viany, Alberto Shatovsky, Ely Azeredo (por onde anda este, que, na época, era detestado pelos cinemanovistas, mas que tinha um estilo surpreendente), José Carlos Avellar (o antípoda de Ely em visão de mundo e visão de cinema), Valério Andrade, Sérgio Augusto, José Wolff, Ronald F. Monteiro, entre outros que posso ter esquecido assim no momento em que digito este post.


Sérgio Augusto depois foi para O Pasquim em sua época de ouro. Tem artigos (melhor dizendo: ensaios) espalhados pelas melhores revistas e jornais brasileiros. Escreveu recentemente As penas do ofício (que já mandei buscar na Livraria Cultura via internet), há alguns anos, Lado B, e entre muitos outros, tem um livro essencial sobre a chanchada brasileira: Este mundo é um pandeiro.

A leitura da entrevista é algo que não se deve perder
A foto é do jornalista Sérgio Augusto.

05 novembro 2008

Foto histórica

O artista plástico Ângelo Roberto, um casal de amigos, o velho Tuna Espinheira e Yarinha com o legendário cineasta Luiz Paulinho dos Santos (camisa e barba brancas, casaco azul claro), num encontro histórico durante a última Jornada Internacional de Cinema, que aconteceu em setembro. Paulinho, para quem não sabe, é autor de um curta pioneiro e célebre, da Bahia, Um dia na rampa, e quem concebe Barravento e o começa a dirigir, em 1959, na praia de Buraquinho, perto da de Itapoã, em Salvador, quando, de repente, é demitido pelos produtores, assumindo a direção Glauber Rocha, que reescreve o roteiro com José Telles de Magalhães e muda a concepção da obra cinematográfica. Filme sobre pescadores explorados pelo proprietário da rede, e a desmistificação de suas crenças por um ex-pescador que, de volta da cidade grande, tenta derrubar mitos arraigados para implantar e conscientizar os explorados à rebeldia. Glauber considera, neste filme, o candomblé como o ópio do povo enquanto a concepção de Paulino é de respeito à religião, embora proponha uma mudança mística, enquanto Glauber tenta provocar uma mudança social. O velho Tuna, sente-te pela foto, está contente com o registro do encontro. E mais contente ainda com o lançamento no Multiplex do já consagrado Cascalho, seu primeiro longa metragem.
Luiz Paulino dos Santos vive hoje em comunidade afastado da sociedade de consumo. Com a morte de Rui Polanah, alguém sugeriu que o apartamento deste, point de artistas, open house para todos os amigos, ficasse com Luiz Paulino. Mas este logo retrucou, conta-se, dizendo: "O que vou fazer num apartamento numa cidade grande?"
Clique na foto para vê-la em bom tamanho.

03 novembro 2008

"Dagoberto vai ao paraíso"

O cinema baiano está a produzir aqui e ali, pois, quinta que vem, às 20 horas, no Cinema do Museu, sessão especial de Dagoberto vai ao paraíso, um curta filmado em 35mm de autoria de Raul Moreira. A julgar pela proposta do autor, o filme promete, considerando-se uma certa non chalance na sua personalidade. E o filme não deixa de se constituir num reflexo do seu autor. Ou não? O fato é que, porém, não se pode dizer nada dele sem o ter visto primeiro. Assim, que se espere a quinta para saber o que Dagoberto vai fazer no tal paraíso, um paraíso raulmoreiriano.

"Tocaia no asfalto", de Roberto Pires

Já que se está a falar de coisas cinematográficas da Bahia, com o lançamento prestigiado de Cascalho, de Tuna Espinheira, e os capítulos do seriado Como nasce o cinema baiano, dominical por natureza, que se veja aqui um thriller importante feito naquela época do chamado Ciclo Baiano de Cinema.

Thriller
genuinamente baiano realizado em 1962, que aborda o relacionamento dos políticos com a criminalidade e as idiossincrasias de personalidade de um pistoleiro de aluguel, Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, produzido logo após A grande feira, é um filme que pode ser visto em dois planos: no plano de sua narrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro, destaca-se sobremaneira a artesania de Pires, o domínio pelo qual articula os elementos da linguagem cinematográfica em função da explicitação temática. Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesaria e, aqui, em Tocaia no asfalto, tem-se um exemplo onde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os dois planos sempre devam ser observados em processo de simbiose.

Realizado em plena efervescência do chamado Ciclo Baiano de Cinema - 1959-1963, Tocaia no asfalto, atesta o seu vigor e a sua atualidade temática. Duas seqüências podem ser consideradas antológicas e das melhores do cinema brasileiro: a tentativa de assassinato frustrada na Igreja de São Francisco, e a do cemitério do Campo Santo. Pires demonstra o seu apuro, o seu sentido de cinema, o timing raro, um faro, por assim dizer, para ’pensar’ cinematograficamente o estabelecimento da mise-en-scène como fator de impacto e de emoção.

Ainda que uma obra formatada nos moldes de uma linguagem clássica -o que não lhe tira de modo nenhum a qualidade, que se fundamenta na chave narrativa da progressão dramática griffithiana, há, no entanto, uma seqüência que, sem se ter medo de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. É aquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre dos presos num caminhão e tenta intimidá-los com um revólver, ocasionando uma fuga em pleno movimento do veículo, quando vem a morrer o irmão do personagem interpretado por Agildo Ribeiro. A rapidez, com que são expostos os rostos embrutecidos dos pobres diabos que estão no caminhão, tem um ritmo que se assemelha a um touch buscado na concepção de montagem de Sergei Eisenstein. Esta seqüência é um flash-back, quando Agildo Ribeiro, dançando, sente-se mal e começa a ter pesadelos retroativos.

Assim, Tocaia no asfalto se sobressai pela narrativa impactante que está a serviço do argumento, mas que predomina sobre este. Que versa sobre um pistoleiro contratado para matar um político corrupto (Milton Gaúcho), que, chegando do interior, vai morar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher (Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem político bem intencionado (Geraldo D’El Rey) pretende instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as falcatruas do grupo do político que está na mira do assassino. Mas as reviravoltas do argumento determinam uma contra-ordem e o pistoleiro, na iminência de matar, é avisado que não mais precisa cumprir o trabalho. Apesar de um matador profissional, tem, porém, seus códigos de honra e prefere ir até o fim naquilo para o qual fora incumbido.

Tocaia no asfalto se desenrola em dois ambientes: o ambiente burguês da casa do político, abrangendo as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (Angela Bonatti) com o jovem e promissor parlamentar, e o ambiente pobre do prostíbulo comandado com mão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiro é hospedado, vindo a conhecer uma prostituta pela qual se apaixona. A latere, alguns personagens, como o policial interpretado por Adriano Lisboa, que circula entre os dois ambientes, Antonio Pitanga, outro matador, contratado, desta vez, para matar o outro. Pires, em alguns momentos, através da montagem paralela, tenta mostrar os acontecimentos em perspectiva de simultaneísmo, quando, por exemplo, Agildo e Arassary conversam no Farol de Itapoã.

Notável realizador, Roberto Pires, responsável pelo primeiro longa feito aqui, Redenção (1956-59), pelo seu extremado domínio formal da linguagem, poderia ter ido longe se trabalhasse no exterior, mas as injunções mercadológicas de um cinema caótico, como o brasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recesso forçado. Mas filmes como A grande feira e Tocaia no asfalto bastam para se ter um cineasta.

Não se pode deixar de registrar a funcionalidade da partitura de Remo Usai – que soa como um grito trágico na seqüência final do trem, o bom argumento de Rex Schindler – também produtor, associado a David Singer, e a fotografia de Hélio Silva. E uma pergunta que não se quer calar: por que, com todos os recursos existentes hoje, o cinema baiano não consegue fazer algo parecido com Tocaia no asfalto?

Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires

Ficção/ 35 mm/ 120 min/ 1962/ P&B

Sinopse: A vida e a psicologia dos assassinos de aluguel no Nordeste. A trama do filme se desenrola em Salvador e gira em torno de um político jovem e idealista que os adversários se esforçam por eliminar. Agildo Ribeiro, deixando de lado o humor, adota postura como o matador, vítima da consciência e do emblemático círculo fatal que o envolve, ao lado de Arassary de Oliveira, a namorada.

Direção: Roberto Pires
Argumento: Rex Schindler
Roteiro e Montagem: Roberto Pires
Fotografia: Hélio Silva
Música: Remo Usai
Cenografia: José Teixeira de Araújo
Produtor Executivo: Glauber Rocha
Diretor de Produção: Carlos Lima
Assistente de Direção: Orlando Senna
Assistente de Produção: Carlos Nicolino de Leo
Assistente de Câmera: José Airton
Som: Walter Webb
Fotografia de Cena: Ugo Pedreira
Maquinista-Chefe: Gerolamo Brino
Produção: Rex Schindler, David Singer e Iglu Filmes
Elenco: Agildo Ribeiro, Othon Bastos, Geraldo del Rey, Arassary de Oliveira, Adriano Lisboa, Ângela Bonatti, David Singer, Jurema Pena, Antônio Sampaio, Roberto Ferreira, Maria Anita, Hélio Rodrigues, Milton Gaúcho, Maria Lígia, , Silvio Lamenha, Gerolamo Brino, Cléo Meireles, Leonor Barros, Sonia Noronha.

02 novembro 2008

Vejam o trailer de "Cascalho"

Não costumo, aqui, no Setaro's Blog, colocar imagens oriundas do You Tube ou de qualquer outra procedência, porque, para isso, tenho um outro blog, Momentos da arte do filme (http://setaroandreolivieri.blogspot.com/). Mas vou abrir uma exceção por causa de Cascalho, de Tuna Espinheira, que é filme baiano da gema. Vejam o seu trailer!


Como nasce o cinema baiano (3)



A crítica cinematográfica existente na Bahia na década de 60, com algumas exceções, apoia e dá força aos filmes que estão a ser realizados. Não somente a crítica em si, mas a imprensa de um modo geral com as inúmeras reportagens, entrevistas e as colunas assinadas. O ensaísta Walter da Silveira é o exemplo maior desse apoio, dessa relação crítica e praxis. Sobre não ter uma coluna fixa nos jornais, Walter da Silveira, no entanto, publica sempre textos copiosos e substanciosos nos suplementos culturais dos matutinos e vespertinos da cidade, além de comandar o seu Clube de Cinema da Bahia, com a exibição semanal de filmes selecionados. É informante e formador na função de explicar a arte do filme aos espectadores de uma província tranquila e reveladora - completamente diferente, nesta época, da balbúrdia que azucrina os soteropolitanos menos afeitos ao consumo desenfreado e a carnavalização existencial.

O capítulo de hoje de Como nasce o cinema baiano é sobre a crítica que tem muito a ver com o advento da cinematografia da terra onde primeiro aportou Thomé de Souza para, aqui, exercer a primeira governança no Brasil.

A considerar que o texto está a ser batido na hora, há sempre o perigo de alguma omissão. A memória, ainda que já fraca, é a propulsora do que se está a ler. E, nesta recordação, vale ressaltar que, em 1958, surge, na imprensa baiana, para mudá-la, um jornal progressista que reúne a elite intelectual da província: o Jornal da Bahia. Nesta época, circa segunda metade dos anos 50, existem quatro jornais diários na cidade: A Tarde, de Simões Filho (morto em 1954 é dirigido pelo jornalista Jorge Calmon), Jornal da Bahia, de João Falcão, O Estado da Bahia e o Diário de Notícias, ambos do condomínio regido por Assis Chateaubriand.

Glauber Rocha é convidado para escrever diariamente um coluna de cinema no Jornal da Bahia. Seus escritos são compilados em O século no cinema. De sua tribuna, procura escrever textos e críticas sobre os filmes que vê na cidade, a estimular sempre o cinema brasileiro e baiano. É célebre a sua apologia a Bahia de Todos os Santos, que Trigueirinho Neto, vindo de São Paulo, realiza em Salvador. O lançamento do filme faz aparecer críticas negativas, mas Rocha o defende com unhas e dentes. No seu estudo sociológico sobre o cinema brasileiro, Brasil em tempo de cinema, Jean-Claude Bernardet analisa a obra de Trigueirinho, que, apesar de suas deficiências estruturais, representa um ponto de vista sobre a realidade social na procura de uma problematização temática, ainda que frustrada.

Glauber Rocha é um crítico atento e, por vezes, generoso, mas, de repente, polêmico, a fazer frente a outros excelentes jornalistas que possuem colunas no Jornal da Bahia, a exemplo de João Ubaldo Ribeiro, cuja estréia na imprensa se dá neste vibrante matutino. No Diário de Notícias quem assina a sua coluna de cinema é Hamilton Correia, colaborador também de Walter da Silveira no Clube de Cinema da Bahia. Vale ressaltar que, numa conversa recente com Hamilton, este disse que, antes de Glauber ter a coluna no Jornal da Bahia, o futuro realizador de Deus e o diabo na terra do sol, publica os seus primeiros escritos no suplemento que Hamilton edita no Diário de Notícias.

José Augusto Berbert de Castro, que morre neste 2008, com uma trajetória de mais de 40 anos no colunismo cinematográfico, é o comentarista de A Tarde. Apaixonado pelo cinema americano, principalmente pela sua época de ouro (e quem não o é?), Berbert, como é chamado, também incentiva o cinema baiano, com suas notas e entrevistas.

Crê-se que quem escreve em O Estado da Bahia é Milton Chagas e, de vez em quando, José Olymphio da Rocha. Na Rádio Excelsior, pontifica, com sua voz grave, Lourival Oliveira, com seu programa semanal Falando de cinema e sem fazer fita, que é divido em vários quadros: os comentários dos filmes da semana, trilhas sonoras, respostas às perguntas dos ouvintes, etc. Lourival, que trabalha hoje no Irdeb, conta-me que tem todas as perguntas e, entre elas, uma do punho deste bloguista. Pretende publicar um livro com o material que guarda, a sete chaves, de Falando de cinema e sem fazer fita. Hamilton Correia escreve para um programa de rádio, mas não o apresenta. Há, e a memória se faz aqui presente com mais intensidade, no programa de Lourival, toda semana, sorteios que oferecem entradas para as salas exibidoras. O bloguista, uma vez, é sorteado, e porque ainda um menino, vai buscar o seu ingresso em mãos. E conhece o legendário Lourival Oliveira, mas este não liga para o garoto apaixonado pelas coisas do cinema. Somente mais tarde, já com coluna em jornal da cidade (Tribuna da Bahia) é que vem a conhecer Lourival e com ele travar relações. Para não esquecer: o crítico radiofônico, nos anos 70, apresenta um programa de cinema na Tv Aratu num programa vespertino dirigido por Teresa Fernandez.

Orlando Senna é outro crítico que publica artigos na imprensa baiana, algumas vezes sob o pseudônimo de Fausto Ferreira. Chega a assinar uma coluna dominical do jornal I.C. Shopping News. Com a ida de Glauber para o Rio, ou mesmo antes, quando se entrega de corpo e alma às filmagens de seu primeiro longa, Barravento (1959/1962), José Gorender assume a sua coluna no Jornal da Bahia sob o pseudônimo de Jeronimo de Almeida. Se José Augusto Berbert de Castro é mais cronista dos filmes, Almeida exerce o que se costuma chamar de crítica cinematográfica até que, com o advento do cruel Ato Institucional número 5 (13 de dezembro de 1968), Gorender (irmão de Jacob), comunista de boa cepa, é perseguido, sendo substituído, na coluna, por José Umberto, então um vestibulando de cineasta com alguns curtas na bagagem (Perâmbulo, O doce amargo, este em parceria com André Luiz de Oliveira, Vôo interrompido, que segundo Álvaro Guimarães é o primeiro filme realmente marginal do cinema baiano - aliás, um capítulo dessas memórias é dedicado ao Surto Underground Baiano, que se dá na segunda metade dos anos 60, findo o Ciclo.

Em outubro de 1969, surge um novo jornal, a Tribuna da Bahia (no qual o bloguista tem uma coluna desde agosto de 1974), e Walter da Silveira é chamado por Quintino de Carvalho, o redator-chefe, para organizar um conselho de cinema nos moldes do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã.

A Tribuna da Bahia, primeiro jornal baiano impresso em offset (um processo
planográfico cuja essência consiste em repulsão entre água e gordura (tinta gordurosa). O nome off-set - fora do lugar - vem do fato da impressão ser indireta, ou seja, a tinta passa por um cilindro intermediário, antes de atingir a superfície), é um sucesso e revoluciona a imprensa da terra (poucos anos depois A Tarde, por causa da sua concorrência, vê-se obrigado a adotar o offset já que tem uma impressão antiquada), tem uma diagramação original, com fotos imensas, revelando-se numa novidade.

Walter da Silveira convida alguns jovens que fazem o seu curso de cinema da UFBa para que tomem parte do conselho de cinema. Os único veteranos, além do comandante, são Hamilton Correira e Guido Araújo (que volta há poucos anos de sua jornada na Tchecoslováquia, onde passa quase dez anos). Os outros se iniciam na crítica cinematográfica: Geraldo Machado, Jairo Faria Goes, José Umberto (que concilia a coluna no Jornal da Bahia com a da Tribuna, mas a adotar, nesta, o pseudônimo de Freire Dias). Com a morte de Walter da Silveira, o conselho se desintegra, restando apenas, duas ou três vezes por semana, Guido Araújo.

Cada integrante do conselho tem uma coluna por semana, e às sextas, como faz o Jornal do Brasil, um filme lançado é escolhido para, página inteira, ser analisado por todos os seus membros.

Mas se chega a um ponto adiantado no propósito desse seriado. Basta por hoje e bom domingo a todos que tiveram a paciência de ler estas mal traçadas.

30 outubro 2008

"Cascalho": a poesia da crueldade

Obra de teor realista, baseada em livro homônimo de Herberto Sales, Cascalho, no entanto, tem seu fecho numa dimensão onírica e poética, quando o garimpeiro, que morre no desabamento das minas pelo temporal imprevisto, aparece todo galante e fagueiro, a entrar num salão e a festejar uma bela garota com a qual executa uma dança. Tuna Espinheira é feliz no fecho de seu filme, neste desvio de tom, o que faz acrescentar um halo poético numa obra de tonalidades cruas e realísticas. A execução da dita seqüência se faz em câmara lenta, e a iluminação (de Luís Abramo) dá os toques necessários para estabelecer a atmosfera de sonho. Que é favorecida também pela aplicada direção de arte de Moacyr Gramacho.

Vencedor do Prêmio Fernando Cony Campos, patrocinado pelo governo do estado da Bahia, que ofereceu recursos mínimos para a feitura de um longa metragem, Cascalho já está pronto desde 2004, mas somente agora, quatro anos depois, e depois de muita luta, é que Tuna Espinheira preencheu todos os requisitos para a sua exibição em circuito comercial. Para entrar nas melhores salas do mercado exibidor, há a necessidade do som Dolby digital.

Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revela em Cascalho a sua influência no registro realista tão cara ao documentário. Filmado in loco, no esplendor do décor de Andaraí, o filme se desdobra para contar uma história de sofrimento e dor sob a égide da brutalidade dos coronéis, que controlam tudo e exploram os que se aventuram no garimpo. Nem os poderes constituídos, como o juiz e o promotor, podem fazer frente à sua sanha autoritária para subjugar a gente humilde.

O início de Cascalho, com os garimpeiros a andar pelas imensas pedras em fila indiana, dá a idéia da dimensão e riqueza paisagísticas da região, como se aqueles homens fossem escravos e estivessem a construir uma pirâmide. O registro cinematográfico de Tuna Espinheira, a revelar sua formação de documentarista, procura uma fabulação que faz emergir a truculência daqueles que a tudo controlam e a luta desesperada dos garimpeiros para extrair do cascalho uma porção de sobrevivência.

A reconstituição de época, considerando que a ação do filme se passa na década de 30, ainda que os parcos recursos disponíveis, é satisfatória, quer do ponto de vista cenográfico como, também, nos figurinos, principalmente na seqüência do enterro. Os planos noturnos que mostram a rotina dos garimpeiros também conseguem imprimir uma sensação de esmagamento e ao mesmo tempo de uma poesia da gente simples com sua linguajar próprio, com a sua maneira de expressar não somente o sentimento como também a sua dor.

A ação se localiza no crepúsculo de uma época de ouro, quando em Andaraí se extraia diamantes e carbonatos, a enriquecer os donos do poder da região, os coronéis, e a escravizar a população de garimpeiros, que, iludidos pela possibilidade de encontrar as pedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeiros escravos da ganância e da ambição daqueles que controlavam a localidade. O personagem maior do filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura dos coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico, conheceu o drama dos garimpeiros e procurou registrá-lo no célebre romance do qual Tuna Espinheira, em adaptação livre, extraiu o seu filme.

Othon Bastos é o coronel que manda em tudo, insensível e cruel, assim como seus acólitos, subservientes, os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempo todo como a expelir o demônio interior), Harildo Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensa que pode mudar alguma coisa, e, difamado, é posto a correr da cidade após um diálogo que revela o conformismo do juiz interpretado por Fernando Neves. Gildásio Leite (o grande ator dos palcos baianos de outrora - quem se lembra dele em O cão siamês de Alzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro, e Jorge Coutinho, a personagem mais carismática de Cascalho, é um cruel capataz de Bastos, homem ambíguo e capaz de tudo. Outros intérpretes: Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goes e, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberante Maria Rosa Espinheira.

Esta não é a primeira versão do livro de Herberto Sales. Há uma de autoria de um estrangeiro, Leo Marten, um tcheco que após realizar vários filmes em Praga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar, 1941, Almas adversas, 1949, Jardim do pecado, 1946, entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950, e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira, Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.

Cascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitória para o cinema baiano. Segundo José Umberto, cineasta (O anjo negro, Revoada...), "Cascalho é o cinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Um dia na rampa - um cinema popular. Eis o eixo: sentimos na imagem o sotaque do povo. Não faz nada mal relembrarmos os princípios éticos e poéticos de Brecht. Brecht buscou alento sobretudo no teatro catequista da Idade Média. Uma arte edificante. Que toma partido: o partido da gente simples, ofendida e humilhada como as personagens de Dostoievski. Tuna quis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiel a si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à "globalização""!). Não. É uma fita simples, como a filmografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Um discurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vem uma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalho de Salles, BA, Os Corumbas, Amando Fontes, SE e O Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba, rapaz! E teve muitas conseqüências na cultura brasileira. Tivemos Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre e Formação Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior. Essas obras montaram a modernidade. Deram sinais preciosos de interpretação de uma Nação que descobria a modernidade com uma ditadura tupiniquim. Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão."
Falou Zé!

29 outubro 2008

"A mulher do tenente francês"



Um dos melhores filmes da década de 80 é, sem dúvida, A mulher do tenente francês (The french lieutenant's woman, 1981), de Karel Reisz (notável realizador inglês, que dirigiu, entre outros, Tudo começou no sábado [Saturday night and sunday morning], 1960, filme que deu a conhecer o extraordinário Albert Finney, e é um dos mais expressivos do free cinema - a nouvelle vague britânica, Isadora, com Vanessa Redgrave na pele da famosa dançarina, A noite tudo encobre [Night must fall, 1964], fita de terror psicológico impressionante, com Finney e Mona Washbourne - a criada do Professor Higgins em My fair lady), obra de metalinguagem que reflete sobre o processo de criação no cinema, com interpretação inexcedível de Meryl Streep (cuja interpretação neste bate forte com a de A escolha de Sofia). Em A mulher do tenente francês, a ação tem início em 1867, numa pequena cidade inglesa, quando um marinheiro seduz e abandona uma jovem. Mais tarde, um aristocrata (Jeromy Irons) rompe o noivado com uma mulher de sua classe pela moça seduzida (Meryl Streep). E é aí que Reisz, com roteiro do célebre Harold Pinter, joga com a linguagem do cinema, o tempo, o espaço. Um século depois do ocorrido, começa a filmagem desse caso e a estrutura narrativa de A mulher do tenente francês alterna o que aconteceu no passado (o filme que está sendo feito) e o presente das filmagens. No fecho, há o final do filme dentro do filme e o que acontece com os dois protagonistas, que também se apaixonam (Jeromy Irons faz o tenente e o ator que o interpreta, assim com La Streep). Obra de um rigor extraordinário que dá prova da competência de Reisz (1926/2002) como competente realizador cinematográfico. Baseado em livro de John Fowles.

Cinematografado pelo genial artista da luz Freddie Francis.

"Morangos silvestres" é o melhor Bergman


Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), de Ingmar Bergman, ganhou disparado como o melhor filme de Ingmar Bergman na enquete promovida por este blog. Dos 46 votantes, 21 (45%) escolheram esta incontestável obra-prima do cinema, deixando no caminho outras filmes notáveis como Persona (segundo lugar, com 7 votos e 15%), O sétimo selo (terceiro, com 5 e 10%), que empatou com Gritos e sussurros. A hora do lobo, A paixão de Ana e Monica e o desejo, obras também fundamentais receberam um tracinho, ou seja, nenhum voto, porque talvez filmes pouco vistos e de mais difícil acesso. Creio que A paixão de Ana não tem cópia em DVD. Vi várias vezes na ocasião de seu lançamento nos já longínquos anos 70, quando minha barba, hoje branca, era preta. E uma vez no Telecine Classic, ocasião que o gravei em VHS, que o tempo, implacável, destruiu-o com mofo e constipações de várias espécies. Paulo Francis considerava A paixão de Ana não somente o melhor Bergman como, também, o melhor filme de sua vida. Votei em Morangos silvestres, que revi recentemente, e o considero uma obra fundamental. Na imagem, a belíssima Ingrid Thulin (pela qual, platonicamente, fui apaixonado), o extraordinário Victor Sjostrom (que morreu, como numa espécie de premonição, logo após as filmagens deste filme - e era um dos grandes cineastas suecos, autor de A carroça fantasma, que Bergman possuia cópia em casa para ver sempre), e, no banco de trás, Bibi Andersson, com seus amigos de jornada.