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28 outubro 2008

Tuna Espinheira exibe "Cascalho" no Multiplex



O cineasta Tuna Espinheira, que conseguiu colocar Cascalho, seu primeiro longa, baseado em romance homônimo de Herberto Sales, numa da salas do Multiplex Iguatemi a partir da próxima sexta, dia 31. Hoje, uma sessão especial para convidados, no mesmo local, às 21 horas.

27 outubro 2008

Relembrando "Spartacus"

Considero Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, o melhor épico da história do cinema, ainda que o diretor não tenha tido a oportunidade de concebê-lo na sua integridade, pois, tratando-se de uma produção da companhia de Kirk Douglas, a Byrna (nome em homenagem à sua mãe), o autor de A laranja mecânica somente foi convidado após a desistência de Anthony Mann, que entrou em conflito com o poderoso producer. Douglas, que já tinha trabalhado com Kubrick em Glória feita de sangue (Paths of glory, 1958), e admirado muito o seu trabalho, com a saída de Mann o convidou para assumir a direção, apesar dos protestos de alguns acionistas de sua empresa produtora, que consideravam Kubrick um imberbe para uma empreitada caríssima como Spartacus. O fato é que o filme, monumental, possui características kubrickianas na maneira de encenar, na composição do enquadramento (a câmera no chão com os gladiadores de corpo inteiro,etc), no sentido peculiar do ritmo, do timing, e da concepção de montagem (Laurence Olivier, como Craso, enquanto fala para sua tropa, tem, intercalando-a, Spartacus a falar para seus comandados em montagem paralela extremamente funcional). O melhor de tudo, porém, é a seqüência da batalha final, que somente poderia ter sido dirigida mesmo por um mestre como Kubrick, pois se assemelha, pelo impacto, pela força expressiva, à seqüência da batalha do gelo de Alexandre Nevsky (1938), de Serguei Eisenstein. Se, nesta, a partitura é de Prokofiev, a de Spartacus é de Alex North, músico especializado em grandes temas para cinema e que tem neste filme um de seus momentos de glória.

Filme de produtor, assim como ...E o vento levou é de David Selznick, Spartacus, ainda que comandado administrativamente por Kirk Douglas, este confiou na capacidade daquele rapaz e lhe deu carta branca para a concepção das grandes seqüências. Este imenso espetáculo, singular na história do cinema, saiu (há alguns anos) em edição especial cheio de extras em DVD, e pode ser considerada a superprodução hollywoodiana que melhor se conservou com o passar do tempo e, vista hoje, é como se o filme tivesse sido feito agora. A sensação que se tinha, quando do seu lançamento em 1961, aqui em Salvador, era de um filme avançado para a sua época em termos da sua concepção de mise-en-scène, deixando em segundo plano Ben-Hur e Os dez mandamentos, embora estes possam, também, serem considerados espetáculos primorosos dentro das fronteiras de seu gênero. Spartacus, no entanto, ganha de todos eles por sua magnificência, sentido de cinema pulsante, elenco inexcedível. E Laurence Olivier, como Craso, tem, aqui, um de suas performances mais eloqüentes.

Vi Spartacus, pela primeira vez, no velho cine Tupy antes da reforma de 1968. No já distante ano de 1961, quando, com 11 anos, quase que não conseguia entrar, pois, na época, o filme era proibido para menores de 14 anos. Assim, talvez meu entusiasmo pelo filme tenha vindo pelo impacto que provocou no adolescente que estava se formando como cinéfilo impertinente. Mas continuei, pela vida inteira, a ver Spartacus, indo assisti-lo onde estivesse passando. A última vez que foi exibido em cinema, creio, se a memória não falha, foi nos anos 70, no Tupy, em cópia esplendorosa na bitola de 70mm. Depois passou para a fita magnética, em horrendo full screen, e, agora, vem restaurado em edição que respeita a integridade de seu enquadramento, isto é, preservando o cinemascope original.

O fascínio que permanece em Spartacus se deve muito à contribuição de Stanley Kubrick como metteur-en-scène e, também, pela confiança que Kirk Douglas depositou nele. Produtor de visão, este dispensou a Kubrick a necessária liberdade para conceber o espetáculo, embora com algumas discussões e atritos por causa do temperamento do realizador de Lolita. Spartacus é um filme permanente que, se for ser sincero, o colocaria entre os 10 melhores filmes que já vi. Há, nestas listas de melhores, as listas afetivas e as protocolares, que procuram aferir a importância dos filmes no processo histórico da sétima arte. Posso dizer que após os 11 anos de idade, quando o vi pela primeira vez, naquele Tupy com o teto cheio de teias de aranhas negras, Spartacus permaneceu comigo, fazendo parte, portanto, de minha história de cinéfilo.

O cinema como expressão artística, vim a compreendê-lo após ver, imbuído de certa estupefação, O eclipse (L’eclise), de Michelangelo Antonioni, assistido num domingo pela manhã no Tamoio recém inaugurado (que substituiu o Glória após reforma infraestrutural). Naquela época, os filmes eram lançados às segundas e aos domingos, dez da manhã, havia as famosas pré-estréias. Foi numa delas que vim a conhecer o grande Antonioni, autor de uma trilogia indispensável e imprescindível: A aventura, A noite, e o citado O eclipse.
Mas estava falando de Spartacus...

26 outubro 2008

Como nasce o cinema baiano (2)



Domingo passado, dando início à série Como nasce o cinema baiano, prometi para o próximo capítulo (este) falar sobre a diferença entre o Ciclo Baiano de Cinema e a Escola Bahiana de Cinema. É muito simples. Nesta, enquadram-se aquele filmes idealizados pelo grupo de Rex Schindler, que tinha Glauber Rocha como mentor intelectual, Roberto Pires, Braga Neto, David Singer, entre muitos outros. O grupo queria estabelecer, em Salvador, uma infra-estrutura capaz de dotar a Bahia de uma produção cinematográfica constante, com continuidade de produção. São filmes da Escola Bahiana de Cinema: Barravento, A grande feira, Tocaia no asfalto, além de alguns curtas. Mas a idéia que norteou Schindler e seus colegas não deu certo, porque o capital investido não retornou por boicote dos próprios brasileiros, como alguns distribuidores do sul do país. O êxito cinematográfico, que se sustenta no tripé produção/distribuição/exibição, depende muito da circulação do filme para que possa se pagar. O lucro obtido seria, na opinião dos idealizadores da Escola Bahiana de Cinema (que estabelecia, inclusive, um esquema de rodízio para os diretores), investido no filme seguinte.

Fora da Escola Bahiana de Cinema, vários outros produtores, que não Schindler, se aventuraram na produção de filmes genuinamente baianos (O caipora, de Oscar Santana, O grito da terra, de Olney São Paulo, Sol sobre a lama, de Alex Viany/Palma Neto...).

Ja o Ciclo Baiano de Cinema reúne todos os filmes que, entre 1959 e 1964, durante a efervescência que se verificou na Bahia, foram aqui filmados, quer sulinos, quer estrangeiros. Para ficar em poucos exemplos, O tropeiro, de Aécio Andrade, A montanha dos sete ecos, do português Armando Miranda, Três cabras de Lampião, de Aurélio Teixeira, Mandacarú vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, entre outros.

Mas hoje, domingo, dia de eleição, vamos falar de Sol sobre a lama.

João Palma Neto, antigo feirante da Água de Meninos, sindicalista, marinheiro de longo curso, quando vê A grande feira (1961), de Roberto Pires, não gosta da maneira pela qual o filme aborda a questão da gigantesca feira e decide bancar um outro filme como resposta ou réplica. Com o dinheiro de sua poupança (naquela época não há a famigerada captação de recursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queiroz para a produção de Sol sobre a lama. Com eles, funda a Guapira Filmes (Schindller se associa a Iglú, empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia na Tela, para poder realizar os filmes da Escola Bahiana de Cinema e há o surgimento, nesta época, de outras empresas - mas assunto para outro tópico). Corre o ano de 1962 e a idéia de Palma é que a fita seja colorida, e com recursos mais sofisticados. Escreve a história, baseada em suas experiências (diz-se que o personagem Valente, interpretado por Geraldo D’El Rey é ele próprio), e confia o roteiro ao carioca Alinor Azevedo (que tem a assinatura nos roteiros de alguns excelentes filmes como Assalto ao trem pagador, e Cidade ameaçada, ambos de Roberto Farias, Um ramo para Luísa, de J.B.Tanko, entre outros. Alinor faz o screenplay de Sol sobre a lama com outro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinema brasileiro perde, pois morre num desastre automobilístico. Ambicioso, pretensioso, João Palma Neto quer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água de Meninos (que, como numa premonição, é incendiada, um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, e seus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim, acanhada, embora hoje imensa, se comparada à de Meninos). Não vê, Palma Neto, nenhum diretor em Salvador capaz de desenvolver as imagens em movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinor e Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está a lançar Tocaia no asfalto, e Glauber Rocha está já no Rio, a lançar o Cinema Novo e a preparar a produção de Deus e o diabo na terra do sol.

Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiro em Hollywood. De volta ao Brasil, adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmes e a escrever nas páginas dos jornais. Um crítico, inclusive, chega a taxá-lo de "inimigo número 1 do cinema made in Hollywood", apesar de, nesta meca, ter permanecido por muito tempo a gozar de suas delícias.

A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neo-realismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.

Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.

O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.

Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”

A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheira e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguina e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.

23 outubro 2008

"Der amerikanische freund"

Depois que revi, agora, O amigo americano(Der amerikanische freund, 1977), de Wim Wenders, vejo que este é o seu melhor filme no qual conseguiu estabelecer uma mise-en-scène mais aprimorada. Há, talvez, pelo fator poético, uma certa tendência a se considerar Paris, Texas (1984), ou Asas do desejo (Der himmel über Berlin, 1987), como seus trabalhos mais festejados, porém, no fator posta-em-cena, e, inclusive, com fortes acentos do melhor thriller americano (Hitchcock inclusive), Der amerikanische freund ganha, ainda que aprecie muito seus trabalhos iniciais como Alice nas cidades, Movimento errado e, principalmente, Com o passar do tempo (Im Lauf der Zeit, 1976), Tokyo-Ga, entre outros. Wenders, no entanto, repetiu-se muito depois de Asas do desejo, e há filmes dele que são completamente descartáveis como Até o fim do mundo ou O hotel de um bilhão de dólares. Mas Der amerikanische freud é filme de primeira, filme de grande cineasta mesmo. Na foto ao lado o gigante Samuel Fuller (Paixões que alucinam, O beijo amargo).
Aliás, Der amerikanische freund tem várias participações de realizadores, como o notável Nicholas Ray (o filme de Wenders sobre a sua agonia, quando estava, este grande diretor do cinema americano, a morrer de câncer no pulmão, é muito bom), Peter Lillienthal (companheiro de Wenders do Novo Cinema Alemão), Jean Eustache, entre outros. Lou Castel, que causou sensação em De punhos cerrados, de Marco Bellochio, aparece numa ponta. Der amerikanische freund tem Bruno Ganz, ator excelente (o Hitler do filme sobre a queda do Terceiro Reich, um Hitler perfeito e abusivamente gesticulado), Dennis Hopper (diretor superestimado e que não vai ficar para a história), e a bela Liza Kreuzer, musa da cinematografia germânica.
Um tranquilo cidadão, antigo restaurador que, sob doença incurável, passa a ter uma loja de molduras, interpretado pelo inexcedível Bruno Ganz, recebe proposta de um americano desconhecido (Dennis Hopper): assassinar um mafioso no metrô de Paris. A recompensa pelo serviço é uma boa soma que ele necessita para custear a doença. Mas seu exame é adulterado para um resultado fatídico de que está prester a morrer. A princípio relutante, aceita o trabalho pensando em deixar o dinheiro para a mulher e o filho. Mas as coisas se complicam a partir do convite para um segundo homicídio, que deve acontecer num trem em movimento. Síntese do expressionismo alemão com o film noir americano, Wenders, repito, faz, aqui, a sua obra mestra. Baseado em livro de Patricia Highsmith com o personagem Ripley (O sol por testemunha/Plein soleil, de René Clement, O talentoso Ripley, de Anthony Minguella).
O final tem uma beleza agônica com Bruno Ganz a dirigir o fusca vermelha ao lado da mulher enquanto seu amigo americano (Dennis Hopper) faz explodir uma ambulância. Mas Ganz, portador de leucemia, agoniza na direção do veículo e sobe, com ele, uma estrada inclinada que vai dar no mar. E morre, ao amanhecer, sob o olhar longíquo do amigo. De repente, em Nova York, a imagem de Nicholas Ray, que sai de cena e anda por uma estrada, quando sobem os créditos com um sentido dinâmico da emoção cinematográfica sob o despertar partiturístico de Jürgen Knieper.
Francis Ford Coppola deve ter convidado Wenders para dirigir, em Hollywood, Hammett, depois de ter visto O amigo americano, que é filme que não se deve perder e tem cópia boa em DVD.

22 outubro 2008

Herberto Sales por Tuna Espinheira

Afinal, e não era sem tempo, Cascalho, o longa metragem do velho Tuna Espinheira, vai ser lançado no dia 31 de outubro em bom circuito e em cópia com som Dolby. Antes, porém, uma avant-première para convidados acontece terça que vem, 28, às 21 horas, na Sala 9 do complexo Multiplex Iguatemi. Vi o filme há quatro anos na Sala Walter da Silveira, mas sem o Dolby e numa projeção que ficou a desejar. Agora vou ter a oportunidade de contemplá-lo na sua majestade. Transcrevo aqui um artigo assinado pelo próprio Tuna, que saiu há algum tempo no Suplemento Cultura de A Tarde a respeito de Herberto Sales, o autor do romance homônimo no qual o filme é baseado. Herberto Sales nasceu em 1917 e se foi desta para melhor em 1999. A foto que ilustra este post mostra a então Prefeita de Salvador, Lídice da Matta, a condecorar o escritor e acadêmico, vendo-se, ao fundo, logo à esquerda, com seu indefectível boné, Tuna Espinheira de carne e osso (os óculos escuros estão devidamente pendurados na camisa). Mas vamos deixar de delongas e ver o que ele escreveu sobre Sales:

"Exatamente há dez anos, juntamente com meu saudoso amigo Irving São Paulo, avistei-me, pela derradeira vez, em encontro pessoal, com Herberto Sales. Era uma data emblemática, naquele 21 de setembro ele completaria 80 anos. Já em São Pedro da Aldeia, na paradisíaca Região dos Lagos, á porta da belíssima casa, construída, homeopaticamente, ao longo de mais de uma dezena de anos, nos deparamos com o indefectível aviso: "deixar jornais e revistas do lado de fora." Era estranho para um homem que viveu intensamente os meios da imprensa escrita, principalmente, com fortes ligações com os Diários Associados,com a revista Cruzeiro, tendo sido Diretor da Revista A Cigarra,etc.etc. Para os desavisados, aquela advertência poderia indicar que naquela casa morava um ermitão, um Dom Casmurro, para os que o conheciam, aquilo não tinha a menor importância.Era apenas mais uma das suas legitimas esquisitices, ou simplesmente um "calundú". A bem da verdade ele vivia indignado com o ostracismo dos bons escritores, com os livros esgotados e sem novas edições, enquanto outros, estranhos no ninho, pertencentes a mídia massiva, publicavam e vendiam desbragadamente. Esta dura realidade, refletida em todas as linguagens artísticas, retrata o momento de pobreza cultural em que penamos. Para Herberto esta coisa feria, o fazia triste, deprimido. Adentramos e no misturamos à comemoração que transcorria em ritual de alegria, brindamos várias vezes, embora, já então, problemas ligados com a saúde, já deixava bastante avexado o dono da festa. Sem mexer no humor, na cordialidade, no hedonismo prazeroso de bater um papo.

Minha aproximação com Herberto deu-se por conta e obra do seu romance CASCALHO. Quando de uma das suas passagens pela terrinha, tive a oportunidade de conversar com ele, falei da minha vontade de levar seu romance às telas. Ele topou laconicamente: "faça o roteiro". Dito e feito. Adaptado, roteirizado, e, devidamente, aprovado pelo autor, partimos para o pega-prá-capar, atrás dos meios necessários para realizar a produção. Foram anos para remover a pedra no meio do caminho. Tempo agônico. Herberto já não estava entre nos quando seus personagens se encarnaram em Wilson Mello, Othon Bastos, Gildásio Leite, Lúcio Tranchesi, Irving São Paulo, Arildo Deda, Agnaldo Lopes, Emanuel Cavalcanti, Caco Monteiro, Rosa Espinheira, Jorge Coutinho, Bertho Filho, Julio Gois e povoaram a cidade de Andaraí, na Chapada Diamantina, onde se passa a estória, nos anos trinta.

As filmagens mexeram com o imaginário da população, de um modo geral, acreditava-se que nenhum dos personagens era propriamente de ficção, os mais velhos diziam haver conhecido muitos, outros tantos eram parentes e aderentes. Por aí afora. Para eles Herberto apenas mudara os nomes, as pessoas tinham tido uma existência real e pronto. A empatia foi total, o clima foi de conivência e cumplicidade entre a equipe e a população local, permitindo formar-se um estúdio ao natural. Pedia-se silencio e todos colaboravam, o filme foi rodado, inteiramente, em som-direto, no sistema digital. Duas são as provas deste abençoado relacionamento, a primeira foi o aproveitamento integral das gravações que não tiveram necessidade de dublagens, a outra, um verdadeiro alumbramento: uma das mais alentadas Pousadas que já tinha outro nome escolhido, antes da inauguração, passou a se chamar: Pousada CASCALHO. E lá está, imponente e, sem dúvida alguma, a mais importante homenagem, até então, prestada ao autor do romance pela sua cidade natal.

Conhecer Herberto foi uma passagem enriquecedora na minha estrada, porque não dizer: motivo de orgulho! Afinal não é todo dia que se convive, mesmo por curto tempo, com um escritor que, no meu entender, e de tantos outros, escreveu, pelo menos três obras-primas: CASCALHO, "Dados Biográficos do Finado Marcolino"e "Os Pareceres do Tempo". Com certeza, deixou a marca do Zorro na literatura. O tempo, crítico soberano, sábio dos sábios, já confirmou, assinou e deu fé."

Saudades de Herberto,
Tuna Espinheira (
tunaespinheira@terra.com.br)

21 outubro 2008

Minnellianas



Tenho profunda admiração por Vincente Minnelli. Realizador notável, é perfeito tanto no musical, como nos dramas ásperos ou nas comédias. No primeiro, revolucionou o gênero quando , em início dos anos 40, convidado pelos produtores de Hollywood, largou a Broadway, e realizou, logo de saída, Uma cabine no céu (Cabin in the sky), musical com elenco todo constituído de negros, que se constituiu num espanto para a época (Orson Welles, em meados dos anos 30, montou em Nova York, MacBeth somente com atores afrodescendentes (a expressão é policamente correta, e, como sou totalmente politicamente incorreto, uso-a para não repetir, no texto, negros). Minnelli introduziu o número musical na ação dramática, tornando-o o próprio assunto dos filmes. Agora seremos felizes (Meet me in St. Louis), reconstituição da atmosfera do início do século XX nos Estados Unidos na cidade que dá nome ao título original, é uma obra-prima, uma beleza de filme. O pirata é de uma ousadia cenográfica que ainda causa estupefação, fascínio, admiração. Neste, como naquele, a admirável Judy Garland, que acabou por conquistá-lo, casando-se com o misógino Minnelli. E não daria para ficar, aqui, citando os seus musicais intrigantes e fascinantes, sob pena de o post se estender além das medidas e da pressa daquele que o escreve. Mas o que dizer de A roda da fortuna (The band wagon, 1953), obra que reflete sobre a decadência do filmusical, que, na verdade, se estenderia, no máximo, no seu estilo clássico, até Gigi, do mesmo Minnelli, em 1958. Depois vieram as superproduções do gênero, a exemplo de Amor, sublime amor (West side story, 1961), ,de Robert Wise e Jerome Robbins, que o Telecine Cult passou recentemente na abominável tela cheia, quando o filme é em scope (creio, aliás, que filmado em 70mm), A noviça rebelde (The sound of music, 1965), entre tantos outros.Nos dramas ásperos com acentos melodramáticos altamente estilizados, Minnelli tem Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953) e Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958) como obras fundamentais. Na comédia, para ficar em uma só Papai precisa casar (The Courtship of Eddie's Father, 1963), com Glenn Ford, Stella Stevens, Dina Merrill, Shirley Jones, Ron Howard, além de Teu nome é mulher, Brotinho indócil, entre muitas outras.
Mas ia falar de A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), com Kirk Douglas, que tem muita afinidade com Assim estava escrito. Mas fica para a próxima.

"PERSONA"



Persona, de Ingmar Bergman, é de 1966, mas aqui nesta província da Bahia somente foi exibido em 1968. O impacto foi imenso, um impacto que não sobrevive nos tempos atuais, ainda que o filme continue a ser uma obra-prima incontestável, que se vê com estupefação. Acontece, porém, que, nos anos 60, época de grande efervescência, havia aquela sensação da descoberta, das novidades que iam aparecendo, como os filmes de Jean-Luc Godard. Depois há uma espécie de estabilização da recepção. Há filmes que modificam o homem caso este esteja aberto à sua contemplação. Outros educam-no, abrindo as janelas de sua percepção.
Bergman, com aqueles planos do projetor, do fotograma a se queimar, da fita que passa pela grifa, a estabelecer o cinema enquanto reflexão do próprio processo de sua criação, deixou gregos e troianos estupefatos, exceção se faça àqueles ignaros de sempre.
Na primeira sessão de Persona houve muitas pessoas que se retiraram do pequeno cinema Popular em Salvador (naquela época todas as sessões ficavam quase lotadas), porque, influenciadas pelo título dado em português, Quando duas mulheres pecam, e pelos cartazes que apresentavam duas mulheres em carícias, pensaram se tratar de uma obra sobre lésbicas a prometer cenas fortes e calientes. Quando viram que Persona não tratava nada disso, os ignaros de toda hora se aborreceram. Conta-se que, na sessão das 20 horas, a mais concorrida, poltronas foram furadas.
Liv Ullmann se dava a conhecer como uma grande atriz no papel de Elizabeth Vogler, a atriz que, interpretando Electra, se recusa a falar e fica muda, e vai com a enfermeira Bibi Andersson para uma ilha deserta a fim de se tratar e acontece, então, entre as duas, um processo de identificação de personalidades. Há um momento em que Andersson conta a outra, pela narrativa oral, como ela foi estuprada. O relato é grande e dá a exata idéia da importância da oralidade em Ingmar Bergman, da palavra em seus filmes. Nesta narrativa, o espectador chega a visualizar os acontecimentos, tal o poder do verbo da atriz e da maneira pela qual ela discorre sobre o fato.
Persona saiu em DVD. É preciso que se veja sempre esta obra-prima. Antes que a recessão, que será intensa, atinja por inteiro o homem ocidental e se venha a ter a vida daqueles pobres personagens dos filmes neo-realistas. É bem provável que nos transformemos em espertos ladrões de bicicletas.

19 outubro 2008

Como nasce o cinema baiano (1)

Quinta passada, dia 16, aconteceu a exibição de uma raridade durante o V Festival Sala de Arte de Cinema: a projeção, em cópia excelente e som perfeito, de A grande feira, filme baiano de Roberto Pires realizado em 1961 e que é um das obras mais emblemáticas do que se convencionou chamar de Ciclo Baiano de Cinema, que se localiza, em Salvador, entre os anos de 1959 e 1964, com uma concentração maior em 1960, 1961 e 1962. Finda a projeção, realizada na sala do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), houve um bate-papo com este bloguista, Petrus Pires (filho de Roberto e que se encontra a restaurar a memória do pai), Braga Neto (produtor de alguns filmes do ciclo), e Paulo Hermida. Antes de A grande feira, o documentário Artesão de sonhos, deste último e Petrus, que focaliza Roberto Pires, como um pioneiro do cinema baiano (é responsável pelo primeiro longa feito na soterópolis: Redenção, 1959), inventor de uma lente anamórfica (como o cinemascope), e um dos maiores artesãos do cinema brasileiro (como bem acentua Orlando Senna em seu depoimento).

Tudo começa com Redenção. Iniciado em 1956, o filme, que vem a ser o primeiro longa baiano, leva três anos para ser concluído e exibido em noite de gala no cinema Guarany, em abril de 1959. (como mostra um trecho do documentário de Petrus e Hermida, com todos os presentes em traje a rigor, como era costume na época). Roberto Pires já tinha feito algumas experimentações amadorísticas em curtas como O calcanhar de Aquiles e Sonho. Seu pai tem uma ótica, a Mozart, e nela Roberto, fascinado com o cinemascope de O manto sagrado (The robe), que vê no mesmo Guarany no qual seria apresentado o seu primeiro longa, resolve investigar, na ótica do pai, para fazer uma lente anamórfica igual à lente do cinemascope. Desde já, além de um pioneiro, um inventor.

Mas Roberto Pires trabalha com alguns amigos (Oscar Santana, entre eles), mas não está vinculado às pessoas que discutem cinema no clube de Walter da Silveira, como Glauber Rocha, Luis Paulino dos Santos (autor de Um dia na rampa), entre outros. É somente a partir da estréia de Redenção que as pessoas começam a se aproximar dele. Porque ficam impressionadas com a concretização de um sonho: a realidade de um filme baiano de longa metragem projetado na tela de um cinema de escol como o Guarany.

Há, nesta época, pessoas que se interessam pelo cinema. Rex Schindler é um deles e se encontra, numa tarde, no escritório de Leão Rosemberg, com Glauber Rocha, então crítico de cinema do Jornal da Bahia, mas que não o conhecia pessoalmente. Este encontro ocasional entre Rex Schindler e Glauber Rocha dá início ao que mais tarde seria chamado de Ciclo Baiano de Cinema. Glauber, que já tem prontos dois curtas, O pátio e Cruz na Praça (desaparecido), não tem experiência prática e chama Roberto Pires para fazer parte do grupo. Schindler e Rocha, a ver o exemplo de Redenção, sonham na viabilidade e exequibilidade de se implantar, na Bahia, uma infra-estrutura cinematográfica. E surge a Escola Bahiana de Cinema, que se estabelece com propostas e um cronograma mais ou menos definitivo. Schindler, associado a outros produtores, produz Barravento, que, incialmente é dirigido por Luis Paulino dos Santos e depois, por força de um golpe (segundo se propaga), a direção é dada a Glauber e o roteiro completamente reescrito em parceira com o esquecido José Telles de Magalhães. Segundo Schindler, Paulino quer uma mudança mística enquanto a idéia de Glauber é no sentido de, como diz o próprio título, uma mudança social.

O fato é que Barravento demora quase três anos para ser lançado, o que ocorre em 1962, depois do lançamento de A grande feira. Glauber leva ao Rio o copião debaixo do braço para ver se Nelson Pereira dos Santos consegue montá-lo.

Estabelecidos os postulados da Escola Bahiana de Cinema, entre os quais a procura de um cinema com raízes na cultura local sem a perda, contudo, do caráter universalista, o projeto se centraliza na criação de uma infra-estrutura capaz de que fossem realizados filmes de forma continuada e sistemática. O lucro de um seria investido no seguinte, e assim por diante. Num esquema de rodízio entre os diretores. Glauber Rocha assume Barravento e, assim, a seguir o cronograma, A grande feira, com argumento de Rex Schindler, é roteirizado e dirigido por Roberto Pires. O próximo, Tocaia no asfalto, tem programado Glauber Rocha na direção, mas este vai ao Rio montar Barravento e já cogita, no sul do país, a produção de Deus e o diabo na terra do sol, que seria realizado em 1963, com recursos oriundos da produtora de Jarbas Barbosa, a Copacabana Filmes. Além do mais, Glauber lança, por esta época, o manifesto do Cinema Novo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim.

A Bahia se torna uma Meca do Cinema, como diz o historiador renomado Georges Sadoul no jornal Les Lettres Françaises. E se torna um pólo aglutinador para cineastas do sul que aqui aportam na esperança de explorar o seu décor deslumbrante. Um dos pioneiros nesse sentido é Trigueirinho Neto, que faz Bahia de Todos os Santos, mas com intenções sérias, de análise dos conflitos sociais de uma sociedade. Não pretende Trigueirinho a exploração do décor, mas, ao contrário, a sua desmistificação. Outros, porém, gananciosos, possuem outros propósitos como a busca do exotismo tropical como faz o francês Robert Mazoyer que, baseado num argumento de Jacques Viot, realiza aqui O santo módico, sobre um jovem pescador desiludido que, apaixonado por uma bela mulher, é abandonado por esta que o troca por outro. Em torno da população, uma imagem sacra que parece solucionar problemas de toda ordem. Viot pretende focalizar a superstição de um povo subdesenvolvido que é manejado por forças ocultas. No elenco, atores baianos entre outros estrangeiros e brasileiros: Irene Boriski, Edgard Carvalho, Heitor Dias, Jorge dos Santos, Gessy Gesse, Zezé Macedo, Leny Eversong, Maria Lígia, Oscar Santana, Léa Garcia, Breno Mello, Jurema Penna, José Teles de Magalhães, Lídio Silva, etc. Ruy Guerra funciona como assistente de direção e a iluminação está a cargo de dois profissionais de alta competência: Roger Blanché e Andréas Winding. Com assistência de Hélio Silva. O filme, porém, está desaparecido.

Assim, Glauber não tem condições geográficas de dirigir Tocaia no asfalto, como está planejado, que é entregue a Roberto Pires em 1961, ano do lançamento de A grande feira em Salvador, a alcançar uma bilheteria sem precedentes, superando, inclusive, o grande êxito do cinema mundial: Ben Hur, de William Wyler, com Charlton Heston. Os baianos vão em massa ver A grande feira, lançado, com festa, em duas salas: uma de primeira linha, o Capri, e outra mais popular, o Jandaia.
Por que Rex Schindler não produz Deus e o diabo na terra do sol, a precisar Glauber ir ao Rio buscar recursos? Segundo se conta, porque Schindler, ao invés de patrocinar a obra glauberiana, prefere investir numa co-produção de Portugal e Brasil: A montanha dos sete ecos, todo filmado em Cachoeira, cidade histórica, importante na consolidação do 2 de Julho de 1823, quando se dá, realmente, a completa independência brasileira iniciada em 7 de setembro de 1822 (independência, vírgula, bem entendido, pois apenas a dívida portuguesa com a Inglaterra, a dona do mundo naquele momento, passou para o Brasil). A montanha dos sete ecos, de um tal de Armando de Miranda, chega a ser exibido em algumas capitais. Um filme de aventuras com atores baianos como João Di Sordi, Roberto Ferreira (o Zé Coió, o Zazá de A grande feira), João Gama, Milton Gaúcho, Jota Luna, José Telles de Magalhães (que funciona também como diretor de produção). O principal não é da Bahia: Milton Morais.
A Escola Bahiana de Cinema, que tem Schindler como principal produtor, ao lado de David Singer e Braga Neto, tem, a rigor, os seguintes filmes: Barravento, A grande feira, e Tocaia no asfalto. Outros filmes considerados genuinamente baianos, no entanto, aqui são feitos, como O caipora (1963), de Oscar Santana, produzido por Winston Carvalho, sobre um azarento (Carlos Petrovich), um caipora (como se denomina no interior), que se apaixona pela filha do coronel local (Milton Gaúcho), mas sofre o preconceito e a discriminação da população local. Ainda no elenco, Maria Adélia (em impressionante caracterização), Iva Di Carla, João Di Sordi, Garibaldo Matos (que depois se tornaria juiz de futebol), Leonel Nunes, Jurema Penna, Conceição Senna, Lídio Silva (o beato Sebastião do filme de Glauber), José Telles de Magalhães (este está em todas). A fotografia (em excelente preto e branco) é de Giorgio Attili, montagem de Roberto Pires (amigo de Oscar desde os primórdios) e como diretor de produção um futuro cineasta: Agnaldo Siri Azevedo.

Outro filme genuinamente baiano é Sol sobre a lama (1964), uma produção de João Palma Neto, que, antigo feirante e sindicalista, considera que A grande feira trata superficialmente a questão do drama da feira de Água de Meninos. Decide, então, com dinheiro do próprio bolso, dar uma espécie de resposta a A grande feira. O filme tem roteiro escrito por Miguel Torres (que falece em acidente logo depois), e, para dirigi-lo, Palma chama Alex Viany. O resultado final não agrada ao produtor e a questão acaba na justiça. Há, desse filme, uma versão de Viany, a que passa no lançamento no Guarany, e uma versão de Palma Neto. Sol sobre a lama, na versão do crítico carioca Viany, é muito influenciado pelo cinema japonês pelo qual o cineasta está apaixonado e contraria o sentido de timing querido pelo produtor. Mas se constitui um sucesso, uma produção mais ambiciosa. A fotografia (em deslumbrante colorido) é do consagrado Ruy Santos. Vinicius de Morais coloca a letra no Lamento de Pixinguinha especialmente para este filme, que tem no elenco Othon Bastos, Geraldo D'El Rey, Jurema Penna, Dilma Cunha, Roberto Ferreira, Milton Gaúch, Gessy Gesse (que se tornaria a sexta ou sétima mulher do poetinha), Maria Lígia, Garibaldo Matos, Glauce Rocha, Lídio Silva, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Doris Monteiro...

Em Feira de Santana, Olney São Paulo deseja filmar a novela Caatinga, do fazendeiro Cyro de Carvalho Leite, e encontra neste o apoio para realizar O grito da terra (1964), canto de cisne do Ciclo Baiano de Cinema. Filme sobre o drama de homens e mulheres que vivem a violência e a fome do sertão agreste, O grito da terra tem, no seu cast, Helena Ignês, João Di Sordi, Eládio de Freitas, Augusta São Paulo, Lídio Silva, Orlando Senna, entre outros. Fotografia de Leonardo Bartucci. E partitura musical do maestro Remo Usai, que faz também a música de A grande feira e Tocaia no asfalto. Aluno de Miklos Rosza, Usai é um partiturista de alto nível que vem a valorizar muito os filmes baianos.

Quem se lembra de O tropeiro, de Aécio F. Andrade, que parece ser oriundo de Vitória da Conquista? Realizado em 1964, conta com Mozart Cintra, Elizabeth Imperial, Carlos Aquino, Jurema Penna (grande atriz baiana da Escola de Teatro de Martim Gonçalves), Mozael Silveira. Vale observar que a direção de arte deste filme vem assinada por Agnaldo Siri Azevedo, que mais tarde é o diretor de produção preferido de Glauber Rocha. E a música do grande Remo Usai. A fotografia de Waldemar Lima, o mesmo iluminador de Deus e o diabo na terra do sol. Filme raro e desaparecido, portanto, que está apenas na memória daqueles que participam de sua elaboração muitos dos quais já mortos. Curioso é constatar que a montagem é de Calazans Neto, artista plástico de renome.

Outra obra cinematográfica que o vento leva é Sob o céu da Bahia, mas não se trata de filme baiano. É uma produção de fora dirigida por Ernesto Remani em 1956, com o ator paulistano Sérgio Hingst, Maria Moreno, Ricardo Campos, Enoque Torres, e com música de outro maestro respeitado: Francisco Mignone. Rodado na praia de Buraquinho (a mesma onde Glauber filma Barravento), Sob o céu da Bahia conta a história de um jovem jangadeiro que deseja abandonar a aldeia por conta da filha de um fazendeiro que domina a região. O amor submisso da filha de um pescador, cobiçada pelo dono de uma barraca de peixes, procura salvar o jangadeiro da vida corrupta da cidade grande. Entretanto, para resolver os problemas de sua aldeia, a jovem decide entregar-se ao furor do dono da barraca. O filme recebe prêmios: Grande Prêmio da Comissão Superior Técnica no Festival de Cannes.. Prêmio Saci, 1959 de Melhor Composição para Mignone, Francisco. Prêmio Governador do Estado de São Paulo, 1959 de Melhor Composição para Mignone, Francisco.

Sobre a diferença entre Escola Bahiana de Cinema e Ciclo Baiano de Cinema, aguardem o próximo capítulo, assim como a vinda de realizadores sulinos para fazer filmes na Bahia, a exemplo de Anselmo Duarte, que filma O pagador de promessas nas escadarias da Igreja do Paço, Nelson Pereira dos Santos, que faz Mandacarú vermelho, porque, indo realizar Vidas secas nas Alagoas, acontece chover torrencialmente, impossibilitando o projeto, e, para não perder a viagem, vem a Bahia e realiza este nordestern meio improvisado que o tem como mocinho. Mas tudo isso mais adiante. Domingo que vem.

Interessante observar que embora alguns filmes baianos atuais tenham recebido prêmios em festivais, a exemplo de Eu me lembro, de Edgard Navarro, Samba Riachão, de Jorge Alfredo, estes filmes são vistos por uma elite e não alcançam o grande público, apesar de estreados em salas dos complexos. A explicação é simples e repetida: atualmente, o povo não vai mais ao cinema como nos idos dos anos 60.

Na imagem, Helena Ignês num momento de A grande feira, de Roberto Pires..

18 outubro 2008

Setaro's Blog atinge 50.000 visitantes

Ainda hoje, a julgar pelo compasso de meu contador Bravenet, o blog deve chegar à marca nada desprezível de 50.000 visitantes, um estádio de futebol de razoáveis proporções, quase cheio. Estalebecido em fevereiro de 2004, a princípio no Blogger da Globo, somente em agosto de 2005 é que houve a transferência para o Blogspot - e agora tomei um susto quando fui acessá-lo para colocar aqui o link: a Globo não me dá mais acesso, porque, segundo diz ao tentar entrar, o antigo blog não era atualizado há mais de 90 dias. Fiz o back up deste Setaro's Blog, mas esqueci do outro. Pena. Desapareceu. Em todo caso, deixo aqui o seu endereço, pois quem tem conta na Globo talvez possa vê-lo: http://www.setaro.blogger.com.br/index.html).

A bem da verdade, em fevereiro de 2006, o contador ofereceu um problema e fui obrigado a zerar tudo, colocando um novo, este da Bravenet. Assim, os 50.000 visitantes que o blog está prestes a atingir, somente podem ser aferidos a partir da colocação do novo contador (que teria algo assim como 10.000), sem considerar o blog antigo da Globo, que vejo furtados seus arquivos por esta desalmada. Antes que este Blogspot queira me atingir (nunca se sabe o dia de amanhã) já coloquei todos os seus arquivos em regime de back up, graças à indicação de um colega connaisseur das coisas belas e dos perigos do espaço virtual.
A enquete sobre o freqüência como que se vai, hoje, ao cinema, deu tracinho em "Todos os dias", isto quer dizer, segundo os votantes, nennhum deles vai mais ao cinema todos os dias. Engraçado. Menino ainda, e de mesada curta, tinha condições de ir às salas de exibição todos os dias, quando não o fazia duas vezes. É que o cinema era outro e não havia suportes com os quais se pode atualmente alcançá-lo. Mas não naquelas condições, mágicas, tela grande, com gongo, luzes coloridas, cortina que se abria no início da projeção, etc. O preço do ingresso também era bem barato mesmo nas casas consideradas de primeira linha (algo em torno de 2 reais a inteira, quando o ingresso atual gira em volta dos exasperantes 16 reais. E havia os chamados cinemas de rua, com o preço da entrada ainda mais barata (1 real a inteira e 50 centatovs a meia). Na Baixa dos Sapateiros, onde se localizavam os poeiras, via o povo alegre a frequentar os cinemas. Mas nos tempos sombrios que vivemos, o povo já foi alijado das salas escuras, pois não tem condições mínimas de frequentar os complexos (Multiplex, Cinemark, Unibanco...). Mesmo as salas alternativas cobram caro. Um cidadão classe média, com a corda no pescoço, também não pode mais ir todo dia ao cinema. Vai, no máximo, se cinéfilo for, uma vez por semana ou espera um filme mais importante para vê-lo. Mas naquela boa época na qual iniciei a minha formação cinematográfica (meados dos anos 50) via tudo e qualquer porcaria era bem vinda ao meu apetite cinéfilico
"Vejo apenas os filmes mais importantes" foi a resposta mais votada (9, 31%). Votei nesta. Mas, por outro lado, "Restrinjo-me hoje ao DVD", "Uma vez de quinze em quinze dias" e "Uma vez por semana, empataram (4, 13%). E "Vejo o que baixo da internet" e "Apenas grandes filmes" (que não deveria ter entrado, pois meio repetição da vencedora) também se igualaram em número de votantes (2, 6%). "Não tenho condições de ir ao cinema" apenas uma pessoa votou, o que dá a entender que o povo não lê meu blog, o que é uma pena.
Se já não falei aqui, devo falar: meu blog foi eleito para A liga dos blogues cinematográficos (http://ligadosblogues.wordpress.com/). Um esforço que valeu, ainda que um blog torto, atropelado, e cheio de defeitos. Por tudo isso, ao terminar de digitar este post vou abrir algumas garrafas de cerveja.
A imagem é dos olhos de Kim Novak num fotograma em Vistavision de Um corpo que cai (Vertigo), do mestre Alfred Hitchcock.

15 outubro 2008

Vejam, clicando, "O Guarany"

O cinema Guarany deixou uma grande saudade para aqueles que o conheceram, que se formaram cinematograficamente vendo os filmes exibidos nesta sala. Em 1981, com a morte do cineasta baiano de Deus e o diabo na terra do sol, passou a se chamar Cine Glauber Rocha. Mas o que quero chamar a atenção de vocês é para a possibilidade de ver O Guarany, documentário de Cláudio Marques e Marília Hughes, que tem imagens raríssimas como a da noite de gala da inauguração do cinema, trechos de Redenção (1956/59), primeiro filme baiano de longa metragem dirigido por Roberto Pires, além do depoimento deste bloguista, Orlando Senna, Hamilton Correia, entre outros, que falam daquela boa época em que o cinema Guarany era uma referência marcante para a esfuziante província da Bahia. Para vê-lo, basta um clique neste link. É algo precioso.

ATENÇÃO!

Por circunstâncias alheias à minha vontade, devo informar aos interessados que a Oficina Expressões do Cinema Contemporâneo foi cancelada e sem possibilidade de ser realizada neste ano.

André Setaro

Janela Internacional de Cinema do Recife



Recebi da curadoria do Janela Internacional de Cinema do Recife o texto abaixo. Por considerar o evento importante, creio também importante que seja divulgado, ainda que para os poucos leitores deste blog.
A curadoria do JANELA INTERNACIONAL DE CINEMA DO RECIFE (13-20 Novembro) divulga agora a lista de selecionados para esta primeira edição, nas mostras competitivas (Brasileiros e Estrangeiros) e não competitiva (dedicada ao cinema pernambucano).

Ao longo das últimas 8 semanas, nossa curadoria viu 812 filmes de 37 países, sendo 425 brasileiros. O difícil trabalho de seleção foi norteado pelo que o conjunto de filmes nos trouxe, nos levando à construção de programas específicos que abrigam as obras temática e esteticamente. Estamos muito felizes com o recorte que será apresentado na nossa primeira edição.
Como todo processo de seleção, decisões difíceis foram tomadas. Isso significa que um número grande de filmes não consta na nossa lista como gostaríamos. Queremos agradecer a todos os que inscreveram seus filmes, com a certeza de que vamos exibir outros autores em edições futuras.
A JANELA INTERNACIONAL DE CINEMA DO RECIFE é incentivado pelo Governo de Pernambuco através do Edital do Audiovisual com co-patrocínio da Fiori e apoio da Prefeitura do Recife e da Aeso – Faculdades Integradas Barros Melo. Apoios institucionais da Embaixada da Espanha no Brasil, Embaixada da França no Brasil, Centro Cultural Brasil Alemanha – CCBA. Também contamos com o apoio da Rec Produtores Associados, da Link Digital e do site Portacurtas.
Os trabalhos de seleção foram realizados pela produtora e montadora Emilie Lesclaux, o crítico Fernando Vasconcelos e o roteirista Luiz Otávio Pereira. A curadoria foi dirigida pelocrítico e cineasta Kleber Mendonça Filho.
Aproveitamos para convitar vocês a assistir a vinheta No. 4 do Janela Internacional de Cinema realizada pelo cineasta Leonardo Lacca:http://br.youtube.com/watch?v=vMAWdthwUiY
Janela Pernambucana (fora de competição):
MURO, Tião, 18 min. O Incrível Trem que Alçou Vôo, Chico Lacerda, 14 min. Cavalo Marinho, Kátia Mesel, 9’30 Clipping Salvador, Renata Pinheiro, 3 min. Dirijo, Raoni Vale e Indios Mura, 12 min. As Máscaras de Ar Não Funcionam, Leonardo Lacca, 12 min. O Presidente dos Estados Unidos, Camilo Cavalcanti, 23 min. O Rei do Coco, João Marcelo Ferraz, 15 min. Ocidente, Leonardo Sette, 6 min. Até Onde a Vista Alcança, Felipe Peres Calheiros, 20 min. Quando a Maré Encher, Oscar Malta, 30 min. Safe, Alice Chitunda 5 min. Sentado na Beira do Rio, Daniel Castelo Branco e Arthur Canavarro, 6 min. Três Contos de Reis, Maria Pessoa, 11 min. Voltage, Filippe Lyra e William Paiva, 4 min. A Vida é Curta, Leo Falcão, 20 min. Competição brasileira Fracasso, Alberto Labuto / ES / 11 min. Garotas de Ponto de Venda, Marcelo Lordello / PE / 26 min. Canosa One, Fellipe Gamarano Barbosa / RJ / 18 min. Eu que nem sei francês, Erly Vieira Jr. / ES / 6 min. Cristo 72, Carlos Magno / MG / 14 min. Osório, Heloisa Passos / PR / 12 min. A Espera, Fernanda Teixeira / RJ /15 min. A Infância de Anastácia, Cláudio Marques e Marília Hughes / BA / 5 min. A Psicose de Valter, Eduardo Kishimoto / SP / 15 min. Animadores, Allan Sieber / RJ / 6 min. Areia, Caetano Gotardo / SP / 12 min. Booker Pittman, Rodrigo Grota / PR / 15 min. Convite para Jantar com o Camarada Stalin, Ricardo Alves Júnior / MG / 10 min Corpo no Céu, Luisa Marques / RJ / 22 min. Corpo Presente, Marcelo Toledo & Paolo Gregori / SP / 20 min. Corpos Sagrados, Mariana Porto / CE / 15 min. Dez Elefantes, Eva Randolph / RJ / 15 min. Dossiê Rê Bordosa, César Cabral / SP /15 min. Esboço para Fotografia, Bruno Carneiro / SP / 15 min. Irmãos Collyer , Alfeu França / RJ / 22 min. Ismar, Gustavo Beck / RJ / 12 min. Jarro de Peixes, Salomão Santana / CE / 11 min. Longa Vida ao Cinema Cearense, Irmãos Pretti / CE / 11 min. Menino Aranha, Mariana Lacerda / PE-SP / 13 min. Nossos Filhos Ponto Com, Eduardo Wotzik / RJ / 8 min. o Brilho dos meus Olhos, Alan Ribeiro, RJ, 11 min. o Dia em que não Matei Bertrand, Ives Rosenfeld e Luiz Carlos Oliveira Jr. / RJ / 17 min. O Som e o Resto, André Lavaquial / RJ / 22 min. O Vampiro do Meio Dia, Anita Rocha da Silveira / RJ / 19 min. Os sapatos de Aristeu, Luiz René Guerra / SP/ 17 min. Passo, Alê Abreu / SP / 4 min. Prîara Jõ, Depois do Ovo a Guerra, de Komoi Panará / PE / 15 min. Quando o Vento Sopra, Petrus Cariry / CE / 18 min. Saltos, Gregório Graziosi / SP/ 8 min. Sin Peso, Cão Guimarães / MG / 7 min. Solidão Pública, Daniel Aragão / PE / 16 min. Solitário Anônimo, Debora Diniz / DF / 18 min. Terra, Sávio Leite / MG / 5 min. Competição internacional: "Ahendu nde sapukai" (Oigo tu grito), Pablo Lamar / Paraguai-Argentina / 13 min. A Piece of News, Evgeny Ruman / Israel / 17 min Aïe!, Virginie Gourmel / Bélgica / 10 min. Bait (Pitayon), Michal Vinik / Israel /12 min. China China, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata / Portugal / 20 min. Dar koche bad miayad (The wind is blowing in the lane), Diako Yazdani / Irã / 9 min. Debajo, Dominga Sotomayor / Chile / 17 min. En tránsito, Isabel Muniz Callejas / México / 21 min. G16 G17, Saw Tiong Guan / Malasia / 18 min. Induction, Nicolas Provost / Bélgica / 10 min. Karaokê Show, Karl Tebbe / Alemanha / 4 min. La leçon de guitare, de Martin Rit / França /18 min. Lacreme napulitane, Francesco Satta / Itália / 19 min. Le baiser, Yann Coridian / França / 10 min. Les comètes incriminées, Hadrien Courtier / França / 5 min. Love you more, Sam Taylor-Wood / Inglaterra / 15 min. Man, Myna Joseph / EUA / 14 min. Marea, Hatuey Viveros / México /14 min. Miraslava, Roberto Santaguida / Canadá / 7 min. Nymph, Ken Jacobs / Estados Unidos / 3 min. Pivot, Ian Strang / Canadá / 4 min. Procrastination, Johnny Kelly / Inglaterra / 4 min. Puppet Boy, Johannes Nyholm / Suécia / 27 min. Reise zum Wald (Journey to the Forest), Jörn Staeger / Alemanha / 7 min. Requiem, SunXun / China / 7 min. Sezon na kaczki (Wild Duck Season), Julia Ruszkiewicz / Polônia / 20 min. Superhero, Jared Katsiane / Estados Unidos / 4 min. The Cabin Man, Hashish Pandey / Índia / 7 min. The Tale of the Little Puppetboy, Johannes Nyholm / Suécia / 14 min. Three of Us, Umesh Kulkarni / Índia / 15 min. Twist, Alexia Walther / Suissa / 11 min. Two Birds, Runar Runarsson / Islândia / 15 min. Uku Ukai, Audrius Stonys / Lituânia / 30 min. Valuri (Waves), Adrian Sitaru / Romênia / 17 min. Viva, Louise Botkay Courcier / França / 13 min. We can’t keep still / Bo Widget / Alemanha / 4 min.

V Festival Sala de Arte de Salvador


Para ver a programação, clique na imagem.

13 outubro 2008

Falta a "dicção" de Saramago a "Blindness"



Há certos críticos que, com poucas palavras, sabem sintetizar o que falta a um determinado filme para que possa atingir um valor poético mais aguçado. Entre eles, Inácio Araújo (da Folha de S. Paulo), cujo poder de síntese é extraordinário. Suas indicações diárias sobre os filmes que passam na televisão constituem no maior exemplo desse poder sintético, dessa arte, poder-se-ia dizer, de criticar/comentar em poucas linhas. Sabe, como poucos, jogar a palavra, efetuar uma sintaxe perfeita em função de uma idéia que ele tem sobre uma obra cinematográfica. Mas, Inácio à parte, cito outro crítico que também tem um rigor escritural na apreciação da arte do filme, que é Carlos Alberto de Mattos (do site Críticos.Com). Sua apreciação de Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles, toca na ferida. A tal ponto que não resisto à transcrição dos dois primeiros parágrafos de sua crítica:

"O romance de José Saramago exerce seu fascínio em parte por causa da trama, em parte pela singular dicção do escritor, especialmente para quem o lê em português. Seria despropositado esperar que uma adaptação cinematográfica, ainda mais uma produção eminentemente internacional como Blindness, conseguisse reproduzir esse segundo elemento. Não se trata aqui de comparar livro e filme, erro tão recorrente na prática da crítica. Mas é preciso examinar o que resta ao projeto de um filme que tem em comum com o livro original apenas a sua trama.Fernando Meirelles procura suprir essa inevitável lacuna com um estilo visual agressivo, baseado na idéia do “mal branco”, nome atribuído à epidemia de cegueira que devasta um país inteiro a partir de um único motorista subitamente acometido (na verdade, não se pode afirmar que o “primeiro cego” do livro é de fato a origem da epidemia). Assim, a supressão da cor como um todo e a invasão do branco formam a “dicção” do filme. Some-se a isso um arsenal de procedimentos óticos relativos a foco, reflexos duplicadores e formas que replicam a órbita ocular. E ainda uma montagem nervosa, que procura exprimir a tensão em torno dos acontecimentos"

Mas, já que estou aqui falando de críticos e de uma adaptação literária, como é o caso de Ensaio sobre a cegueira, vi, recentemente, no Canal Brasil, um verdadeiro massacre praticado por Paulo César Saraceni (que é um diretor a respeitar, mas menos aqui) em cima de uma obra-prima: Dom Casmurro, de Machado de Assis, que em sua versão criminosa e cinematográfica se chamou Capitu. O filme é um desastre completo e acabado e uma lição permanente de como não se deve adaptar uma obra literária para o cinema. E pensar que o roteiro foi escrito por Lygia Fagundes Telles e seu marido Paulo Emílio Salles Gomes!!!!!

12 outubro 2008

Cidadão Walter

Os quatro volumes fundamentais do pensamento cinematográfico de Walter da Silveira já foram lançados há quase dois anos. Patrocinado pelo Governo do Estado, O eterno e o efêmero, título do livro que se inspirou no seu discurso de posse na Academia Baiana de Letras em 1968, foi apenas distribuído e enviado para entidades ligadas ao cinema e a personalidades da área. Difícil adquiri-lo nas livrarias, porém. Obra de tal porte e importância deveria ter sido bem distribuído para estar acessível a todos os interessados. A organização, primorosa, um trabalho árduo de pesquisa do cineasta e escritor José Umberto Dias, autor de Revoada. Mas vamos, aqui, traçar um panorama sobre Walter da Silveira e falar um pouco de um seu outro livro de ensaios sobre a arte do filme: Fronteiras do cinema.

Com 19 ensaios, Fronteiras do Cinema (Edições Tempo Brasileiro, 1966), livro de Walter da Silveira (1915/1970), abriga escritos publicados em diferentes ocasiões na imprensa baiana. O autor selecionou-os e resolveu reuni-los numa publicação tendo em vista que “a crítica cinematográfica tem certamente uma efemeridade maior do que as outras e a dimensão do livro é uma tentativa de permanência”. Destacam-se, em Fronteiras do Cinema, dois momentos fundamentais para a compreensão do pensamento do ensaísta em relação ao processo de criação no cinema: Crítica e Contracrítica, o primeiro ensaio, que abre o livro – um severo artigo sobre a responsabilidade daquele que julga a obra-de-arte, “esta responsabilidade humana e social” – e O instrumento do humanismo, o derradeiro, um brado retumbante sobre a necessidade de o veículo cinematográfico ter sempre em vista, como elemento essencial, a figura humana.

Tem-se, em Fronteiras do Cinema, um dossiê analítico acerca das mais variadas vertentes da estilística cinematográfica, passando pela entrevisão de Ingmar Bergman, ao ressaltar, neste, a renovação da natureza unanimista do cinema, às discussões entre as fronteiras do cinema e da literatura (Dostoievski ou Visconti?), às noites de um Federico Fellini, até atingir um ensaio que indaga da contribuição do cinemascope para a estética do cinema, além de desmistificar e dimensionar a real importância de filmes como Fantasia, de Walt Disney, e Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus. O livro, entretanto, não pára por aqui. Contém mais - e muito mais.

Do “mestre do suspense”, Walter não perdoa suas vertigens, sua aparente exterioridade, no único ensaio, a nosso ver, infeliz do grande ensaísta, posto que, em Hitchcock, o argumento é concessão enquanto que a mise-en-scène, mensagem. Até que ponto a arte cinematográfica foi capaz de transportar as torrentes verbais, do texto shakespeariano? Eis outro artigo fundamental do mestre Walter, o qual não descuida também dos vôos poéticos e da irreverência do solitário Monsieur Hulot, personagem do comediante francês Jacques Tati. Ou da efemeridade dos sentimentos do cinema de Michelangelo Antonioni. Ou da poética de Jean Cocteau. Ou da oralidade em Alan Renais.
E o cinema brasileiro? Que Walter da Silveira demonstrara tanto interesse, durante a sua trajetória de crítico, podendo-se mesmo afirmar que fora um grande animador de cinematografia baiana e nacional? O cinema brasileiro viria em publicação especial, que a fatalidade do destino não permitiu. Mas, em 1978, com a edição póstuma de História do Cinema Visto da Província, pela Fundação Cultural do Estado, com organização, estudo e ensaio de José Umberto Dias, resgata-se para a permanência em livro, um pouco da pesquisa feita através do tempo, num trabalho de verdadeiro arqueólogo da arte fílmica, dos primórdios do cinema na Bahia. E, sob ótica de um bom provinciano, Walter descobre, aos poucos, o cinema internacional, que vai despontando na cidade do Salvador. Também, poder-se-ia perguntar: e Charles Chaplin, a quem Walter tanto amara? Carlitos, ainda em tempo de vida do crítico, é objeto de um estudo definitivo sobre a sua filmografia em Imagem e Roteiro de Charles Chaplin, que Walter lança, em agosto de 1970 – pouco antes de morrer (o que ocorre no mesmo ano) – no Cine Bahia, com uma exibição especial de O Garoto (The Kid) em sua homenagem.

Dos 42 anos da publicação de Fronteiras do Cinema, décadas se passam e o cinema brasileiro se encontra órfão de Walter da Silveira há 38 – e é impressionante como a nova geração desconhece Walter da Silveira, que se restringe, hoje, a um nome dado a uma sala alternativa de programações cinematográficas, confirmando, com isso, a falta de memória característica da contemporaneidade. O apogeu criativo do cinema moderno, entretanto, Walter presenciara, pois este se dá lado a lado com a formação cultural do grande ensaísta. Ainda menino, Walter conhece a figura de Carlitos, assiste à transformação da estética da arte muda para o cinema falado, acompanha o desenvolvimento narrativo de um Orson Welles (Cidadão Kane), de um Sergei Eisenstein, contempla a nova postura ética da cinematografia com a eclosão do neo-realismo italiano. E as revoluções sintáticas, inauguradoras de uma nova sintaxe, com Michelangelo Antonioni, Alain Resnais e Jean-Luc Godard, entre outros. Porque, nascido na segunda década do século XX, Walter da Silveira tem o privilégio de ser quase contemporâneo das transformações estilísticas que marcaram a arte do filme.

Platéia e balcão do Guarany lotados. Sábado de manhã de 1965. A maioria dos espectadores constituída de estudantes do Central, que, filando aulas - sábado, naquele tempo, também tinha aula, adquiria o conhecimento do filme como arte. Uma turma, porém, de capadócios, que estava ali, naquela sessão, apenas para perturbar, gritava, ria, e assobiava diante dos passos poéticos de Hiroshima, mon amour. Num determinado momento, Walter da Silveira, temperamental como era, levantou-se e solicitou que a projeção fosse interrompida e que as luzes da sala se acendessem. Diante da platéia, que ficou silenciosa, Walter deu tremendo esporo nos jovens assanhados, fazendo-lhes ver que Hiroshima era uma obra de arte e merecia todo o respeito e todo o silêncio.

Walter da Silveira não admitia que alguém saísse no meio de um filme. Ficava aborrecido e o pecador restava, depois, sem moral com o mestre. Qualquer conversinha lateral também era reprovada pelos olhos de Walter da Silveira.Quem quer conversar que vá para a sala de espera ou saia do cinema, costumava dizer.

A importância do Clube de Cinema da Bahia, na formação de platéias, na deflagração do próprio “Ciclo Bahiano” (entre 1959 e 1963, filmes genuinamente baianos são realizados: Redenção, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, etc.), e como centro difusor da cultura cinematográfica, é inquestionável. A liderança de Walter proporciona a muitos interessados pela “sétima arte” uma espécie assim de descoberta da importância do cinema como veículo de expressão artística.

Vive-se, nos anos 50, na urbis soteropolitana, sob influência do espetáculo norte-americano, que impõe uma linguagem e uma forma de ver o discurso narrativo. Vive-se, portanto, sem a possibilidade de contemplação de outras conquistas da linguagem cinematográfica, porque o mercado, dominado pelas companhias americanas, não oferece outra opção que não seja o espetáculo narrativo tradicional, imperando o star system, a idolatria, o consumo desenfreado – não como agora, diga-se logo e de passagem.

Com o Clube de Cinema da Bahia, Walter da Silveira possibilita aos baianos o conhecimento dos filmes neo-realistas italianos (Roma Cidade Aberta, Paísa, ambos de Roberto Rossellini, Ladrões de Bicicleta, Umberto D, Milagre em Milão, todos de Vittorio De Sica), do realismo poético francês (Les enfants du paradis, de Marcel Carné), do cinema de Jean Renoir, da cinematografia soviética e dos discursos estéticos de um Sergei Eisenstein (O Encouraçado Potenkin, Outubro, Ivan o terrível), etc, etc, etc. A contribuição primordial de Walter neste período está em ter despertado muitos cinéfilos para a descoberta do cinema como uma linguagem autônoma, como um verdadeiro e poderoso veículo de expressão artística. Dentre os vários alunos que teve, um destaca-se sobremaneira: Glauber Rocha, que, conforme o mesmo confessa em alguns de seus escritos, “aprendeu cinema com Dr. Walter da Silveira”.
É o próprio Walter quem conta a inauguração do Clube (A Tarde: “Origem e fundamento do Cinema de Arte da Bahia”, em 1.03.67): “Fundado em 27 de junho de 1950, no auditório da Secretaria da Educação, o Clube de Cinema da Bahia dava início às suas atividades culturais projetando num velho aparelho, quase sem uso, com perigo de queimar a fita, Os visitantes da noite (Les visiteurs du soir), de Marcel Carné. Existia uma cena de dança medieval em que, por processo de técnica cinematográfica, os gestos e os sons se tornavam crescentemente lentos até vir a imobilidade total dos atores: o público pensou num defeito do projetor, exprimindo seu desencanto por ver interrompida a estória num momento de tamanha beleza, mas, logo depois, sorria dele próprio ante o prosseguimento dramático. E se tratava de público da mais alta qualidade, começando por Anísio Teixeira, que, Secretário da Educação, cedera o auditório ao Clube, prestigiando-lhe a fundação”.

Segundo recordações de Walter, o auditório era pequeno para os espectadores que, à porta, se inscreveram como sócios. Cerca de duzentos para uma sala de cem. “Não havia imaginado este êxito, Carlos Coqueijo da Costa e eu, quando fundamos o cineclube, seguindo os modelos franceses da época. Sabíamos que nossa cidade poderia classificar-se entre as mais atrasadas cinematograficamente do mundo, desconhecendo, sobretudo o cinema europeu, mas não supúnhamos que tanta gente estivesse como nós a procura do tempo perdido”, escreveu ele no mesmo artigo.

A segunda sessão tem de ser numa sala comercial: o “Gloria” (hoje “Tamoio”). No primeiro domingo de julho. De manhã. Até aquela data nenhum exibidor pensara em matinais, o Clube de Cinema criava um novo horário. E às 10 horas todas as cadeiras estavam ocupadas para a projeção de Desencanto (Brief-encounter), o extraordinário filme inglês de David Lean. O cineclubismo entra para a vida da cidade. O público de todas as manhãs de domingo, além de versátil, compunha-se das figuras mais representativas da cultura baiana, escritores, artistas, professores, universitários, advogados, médicos e estudantes.

Com menos de um ano, em abril de 1951, o Clube de Cinema da Bahia realiza um Festival Internacional do Filme de Curta-Metragem, com a participação de doze países. Até então, no Brasil, nada se fizera mais organizado. Um júri de alto nível é eleito e suas votações têm um caráter tão polêmico quanto as discussões que travam na platéia sobre as fitas que devem ser premiadas.

Como conferencistas convidados estão Alberto Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva e Luís Alípio de Barros. Suas palavras, ditas no palco do “Guarany”, também se tornam polêmicas, com o jogo cruzado de perguntas e respostas a propósito de todos os temas cinematográficos. Walter da Silveira contou: “Tenho uma carta de Cavalcanti que releio sempre com orgulho, embora me entristeça recordar como esse grande homem de cinema tão admirado por todos os historiadores mundiais por sua contribuição para o cinema francês dos anos 20 e para o cinema inglês dos anos 30 e 40, foi praticamente banido no Brasil; nessa carta, Cavalcanti fala do público daquele festival como dos melhores que conheceu em toda parte. E igualmente Vinicius: mais do que os filmes, não obstante os clássicos, julgou que a platéia merecera o prêmio, pela quantidade e qualidade dos espectadores. Em tão pouco tempo, o Clube de Cinema formara um tipo de público para dez dias seguidos somente de curtas metragens”.

Nos anos 60, o “Clube” passa a funcionar aos sábados, de manhã, no Cine Liceu. Depois, em 65, muda-se para o Cine Guarany, também aos sábados, fazendo confluir para suas sessões cinéfilos e estudantes, universitários e secundaristas, os quais, após os espetáculos, servem-se do “Bar e Restaurante Cacique” para um bate-papo em torno dos filmes apresentados, numa época em que ainda se pode transitar pelo centro da cidade, quando a Bahia ainda oferece a oportunidade de se “tê-la” característica e provinciana.

Dois anos depois, reformando-se o antigo “Popular” (na Rua da Oração, paralela a Saldanha da Gama, onde fica o Cine Liceu), Walter concentra as atividades cineclubistas nesta sala exibidora, inaugurando a programação em junho de 1967, com Terra em Transe, de Glauber Rocha, numa homenagem ao dileto cineclubista que atinge, então, dimensão internacional. As projeções tornam-se ininterruptas, com sessões contínuas, modelando-se Walter no esquema programático do Cine Paissandu, do Rio de Janeiro. A experiência, no entanto, por causa das injunções do mercado exibidor, não dá certo.

Em 1968, o Clube de Cinema transfere-se para a Reitoria, com projeções semanais, aos sábados pela noite. Neste mesmo ano acontece, por iniciativa de Walter, um Curso Livre de Cinema, que se estende por todo o ano, com aulas duas vezes por semana. O patrocínio é da Universidade Federal da Bahia. Walter da Silveira realiza seu sonho de dar um curso completo sobre a história e a estética da “sétima arte”. Além de um estilista admirável, irrepreensível nas suas construções lingüísticas e na manipulação da sintaxe (como tão bem atestam seus escritos), Walter da Silveira possuía o dom da oratória. Antes de cada filme, discorria sobre o cineasta e a importância da obra fílmica, envolvendo a platéia com a sua “oralidade” transparente e vivaz. O ano de 1970 surge fatídico, pois vem a falecer em novembro.

Há críticos e críticos. No prefácio de Fronteiras do Cinema, diz Jorge Amado: “Não farei a Walter da Silveira a injustiça de chamá-lo de crítico de cinema, de tal maneira a expressão se tornou um insulto, um nome feio”.

Estamos ante um ensaísta de cinema, continua Jorge Amado, com estatura de historiador de cinema – e o caminho da história da arte cinematográfica certamente será por ele palmilhada. Um grande ensaísta de cinema pela seriedade do conhecimento, pela decência de sua posição feita de amor pela criação do homem no plano da cinematografia, por seu livre pensamento, pela intransigência de seus pontos de vista que são, ao mesmo tempo, resultados de uma visão maleável e flexível, contendo uma realidade de experiência vivida (“a crítica que não refletir essas vivências de desespero – escreve ele sobre o drama do cinema – arrisca-se a parcial e injusta”).”

Pelo muito que Walter da Silveira estudou, viu, contemplou, degustou e usufruiu o prazer estético-cinematográfico, pode se dizer que pouco deixou em termos de bibliografia sobre sua arte predileta. A maior parte de seus escritos encontra-se, entretanto, espalhada pelos jornais baianos nos quais colaborava com relativa intensidade, enquanto não se encontrava, como advogado trabalhista, atuando em defesa dos pobres e oprimidos. Assim, este dublê de advogado e ensaísta de arte, pai de prole numerosa, bastante devotado à família, havia de desdobrar-se para, nos intervalos das lides judiciais, refletir sobre a natureza da arte do filme, sobre o específico cinematográfico.
A foto mostra Walter da Silveira ao lado do cineasta Nelson Pereira dos Santos.