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19 setembro 2009

Tuna é premiado na Jornada Internacional da Bahia

O jovem cineasta Tuna Espinheira acaba de receber o Prêmio Diomedes Gramacho da Jornada Internacional de Cinema da Bahia pelo seu curta Leonel Mattos a vinte e quatro quadros por segundo. O nome do troféu é uma homenagem a um pioneiro do cinema baiano, que, num ato tresloucado de desespero, jogou todos os seus filmes (incluindo os negativos) na Baía de Todos os Santos. Não se tem, portanto, nenhum registro de seu trabalho.

O blog dá, aqui, os parabéns ao jovem Tuna, realizador com muita quilometragem rodada (tem, em sua rica filmografia, mais de duas dezenas de curtas, além de Cascalho, longa-metragem)). Trabalhei num deles, O cisne também morre (1982), num papel esdrúxulo: o de um agente de funerária que tem, como lobby, beber formol.

18 setembro 2009

Um Pérola de Adega





Quem vai à Adega Pérola, no Rio de Janeiro, não resiste a tomar vários chopps bem gelados e comer os seus mexilhões, as suas morcelas, as suas lulas (não confundir com alguma coisa parecida). É um lugar para entrar e não querer mais sair, porém permanecer, nela, ad infinitum, a perder a noção do tempo, embora nunca do espaço, inconfundível. Se estou a fazer propaganda, não estou, mas se estiver, que esteja. Se existe paraíso na Terra, a Adega Pérola pode assim ser considerada.
As fotos mostram a famosa Adega: a enorme chopeira, pronta para a tiragem do chopp com pressão adequada, serpentinas devidamente geladas, tulipas e copos dentro da água gelada com gelo. E Beto a tirar um chopinho. O que a foto não mostra são os clientes, com água na boca, que estão fora do quadro a se babarem de prazer.

Esta postagem dá início a uma série dedicada aos chopes cariocas. Os créditos são do publicitário Jonga Olivieri.

17 setembro 2009

"C'eravamo tanto amati"

Filme que abarca trinta anos da história da Itália e, também, do seu cinema, Nós que nos amávamos tanto (C'eravamo tanto amati, 1974), visto hoje, é uma preciosidade. Realizado com muita sensibilidade e com aquela maneira de expor as situações como somente os italianos sabem fazer, o filme aborda também o itinerário de três amigos desde o final da Segunda Grande Guerra, quando se conheceram, até o engajamento político (ou a alienação) dos conturbados anos 60, a chegar, inclusive, neste panorama temporal, à primeira metade da década de 70. O sabor de C'eravamo tanto amati, no entanto, advém de certas sequências magistrais que Scola as concebe com extremada força poética como aquela em que Nino Manfredi vai ao teatro pela primeira vez com Stefania Sandrelli, e, porque apaixonado por ela, ao sair, na rua, repete os gestos dos atores numa ação de congelamento para, por meio dela, declarar o seu amor à companheira.
Nino Manfredi, Vittorio Gassman e Stefano Satta Flores são os três amigos que se conhecem durante a resistência à ocupação nazista e, a partir daí, acompanhamos as suas trajetórias por três décadas. Manfredi, enfermeiro, vem a conhecer, no hospital, a belíssima Stefania Sandrelli, a iniciar, com ela, um romante, até que surge Gassman, que a conquista, deixando Manfredi na rua da amargura. Mas se, a princípio, há uma celebração da amizade e da alegria, com o passar do tempo, os três tomam caminhos diversos e antagônicos. Gassman é ambicioso, advogado, casa-se com Giovanna Ralli, filha de um milionário, por oportunismo e interesse, e deixa Sandrelli, que volta aos braços do antigo namorado. Stefano Satta Flores toma a decisão de se casar e ser professor e crítico de cinema numa cidade interiorana da Itália, mas, descontente com o provincianismo do lugar, volta a Roma, onde reencontra Manfredi. Quer ser crítico de cinema. Há um momento particularmente interessante quando Flores passa, num cineclube da cidade, Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica, e se aborrece com os graves pronunciamentos dos professores que condenam o neo-realismo italiano.
Aliás, C'eravamo tanto amati é um filme sobre o cinema italiano. Também. São frequentes as alusões aos filmes e há uma sequência na qual Scola reconstrói as filmagens da cena de Fontana Di Trevi com Federico Fellini, Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg, todos a fazer os papéis deles mesmos. Em outro momento, Flores, em programa televisivo, ao responder perguntas sobre Ladrões de bicicleta, erra uma delas e perde o prêmio. Anos depois, porém, numa palestra de Vittorio De Sica (como ele mesmo numa de suas últimas apariçoes no cinema), vem a testemunhar, pelas próprias palavras do diretor do filme, que tinha razão e o programa estava errado. São momentos preciosos deste filme encantador.
Da euforia do início, surge o desencanto, a nostalgia do pretérito, a amargura. Gassman se torna poderoso, mas solitário, egoísta. Não se pode deixar de mencionar a presença de Aldo Fabrizi, grande nome da cinematografia italiana, no papel de seu sogro: gordo, disforme, autoritário, enorme performance. Trata-se, em suma, de um filme que não pode deixar de ser visto e que traz saudades dos grandes momentos do cinema italiano nos anos 50 e 60 nestes tempos em que a indústria cultural hollywoodiana tomou completamente conta do mercado e raros os filmes em língua italiana que frequentam a imaginação dos cinéfilos.

Triste a constatação, como vi agora no Imdb, o maior banco de dados da internet sobre filmes, que Manfredi, Gassman, o grande Gassman, o Laurence Olivier do cinema italiano, e Stefano Satta Flores não vivem mais na Terra.


16 setembro 2009

Parecer do MPF aprova contas de "Revoada"

Também publicado ontem, 15 de setembro, no Terra Magazine.

O parecer de Dr. Israel Gonçalves Santos Silva, Procurador da República, que me foi enviado para publicação, vai, aqui, na íntegra e "ipsis litteris", como um direito de resposta da parte do produtor que se sentiu ofendido pelos diversos textos que escrevi contra a montagem de "Revoada", longa de José Umberto, feita à sua revelia. O parecer, encaminhado ao Juiz Federal da 16ª Vara da Seção Judiciária da Bahia, e recebido pela Justiça Federal, conforme consta do documento, em 30 de julho de 2009, às 12:04, aprova a prestação de contas feita pela produtora REX SCHINDLER FILMES E SERVIÇOS LTDA. Antes de mais nada, no entanto, gostaria de esclarecer que os meus escritos sobre "Revoada" não tiveram o propósito de "enxovalhar" ninguém, mas, e tão-somente, defender o direito de um realizador cinematográfico poder montar o seu filme conforme a sua concepção original, o que não foi feito. Apesar do parecer, há ainda uma luz no fim do túnel.

Houve, dia 3 de setembro próximo passado, uma audiência no Ministério Público Federal, com a presença de Dr. Israel Gonçalves Santos Silva para conversações em torno da possibilidade de José Umberto vir a montar "Revoada" segundo a sua ótica e estética. As conversações estão sendo patrocinadas por Póla Ribeiro, que, desde o princípio, mostrou-se interessado e aplicado no sentido de que "Revoada" possa ser ainda salvo e editado pelo seu autor. Na audiência referida estiveram presentes, além de Póla Ribeiro, Diretor Geral do Irdeb, João Luis Torreão (assessor especial do Irdeb), e o cineasta José Umberto. A luz no fim do túnel, como se pode perceber, ainda não se apagou. Com a publicação deste parecer, encerro os textos sobre o "imbroglio", deixando-o para que seja resolvido nos canais competentes.

EXMO. SR. DR. JUIZ FEDERAL DA 16 VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DA BAHIA.

Autos número 2007.33.00.015802-3

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República que esta subscreve, instado a manifestar-se acerca da documentação constante às fls. 661/2442 dos autos da AÇÃO POPULAR em epígrafe, na qualidade de fiscal da lei, vem expor o que se segue:

As fls. 661/2442 trazem cópia da documentação completa relativa à prestação de contas dos recursos utilizados na produção do filme "REVOADA" (Minc 01400.018293/2005-54), encaminhada pelo Ministério da Cultura, consistindo especialmente em notas ficais, cupons fiscais, comprovantes de depósitos bancários, contratos e recibos de pagamentos referentes à locação de veículos ou meios de transporte (lancha, vans, caminhões, etc), listas de despesas, cópia de contrato de seguro de acidentes pessoais coletivos, recibos de pagamentos realizados, recibos de adiantamento de caixa, comprovante de compras de passagens aéreas, dentre outros.

Além dos documentos contábeis já mencionados, constam da referida documentação: formulário para prestação de contas expedido pelo Ministério da Cultura devidamente preenchido (fls. 2251/2272); notas explicativas referentes à prestação de contas (fls. 2273/2277); livro razão da REX SCHINDLER FILMES E SERVIÇOS LTDA ME referente ao ano de 2006 (fls. 2309/2331); livro razão da REX SCHINDLER FILMES E SERVIÇOS LTDA ME referente ao ano de 2007 (fls. 2333/2380; oficio do Ministério da Cultura solicitando documentos à REX SCHINDLER (fls 233/2380; ofício do Ministério da Cultura solicitando documentos à REX SCHINDLER (fls. 2382/2383) e resposta da mesma (fls. 2385/2387); e-mail encaminhado pelo Ministério da Cultura solicitando cópias de extratos bancários da empresa REX SCHINDLER e resposta (fls. 2388/2414); relatório parcial de análise financeira da prestação de contas referente ao processo número 01400.018293/2005-54 (fls. 2415/2418; laudo técnico referente à obra "REVOADA" (fls. 2419/2420).

Os documentos de fls. 2416/2418, que declaram a aprovação parcial da prestação de contas pelo Ministério da Cultura, já constavam dos autos (fls. 634/636) em nada contribuindo à elucidação dos fatos.

O Relatório parcial de análise financeira emitido pela Secretaria do Audiovisual (Coordenação de Prestação de Contas) do Ministério da Cultura e o PARECER CONCURSO Sav/CEP número 001/1008, concluíram,

"As despesas estão discriminadas de forma clara e objetiva, conforme relação de pagamentos, contendo números de cheques/OB e valor, guardando conformidade com os valores debitados, constantes do extrato bancário.

Constatamos nos extratos bancários a efetiva aplicação de recursos provenientes de rendimentos financeiros na execução do projeto.

A análise efetuada por esta Coordenação de Prestação de Contas foi realizada conforme determina o item 9.1.1. do Edital número 2 de 25/10/2005, descrito abaixo:

Item 9.1.1 - A Contratada deverá ainda apresentar a prestação de contas referentes ao apoio recebido, na forma da legislação vigente.

Face ao exposto, e por considerar a boa e regular aplicação dos recursos, recomendo encaminhar o presente processo ao Núcleo de Editais da Secretaria do Audiovisual para que seja dada continuidade à aprovação da presente liberação da quarta parcela do apoio"

Diante do exposto, sugiro aprovar parcialmente a Prestação de Contas dos recursos auferidos da primeira, segunda e terceira parcela do concurso de longa-metragem (fl. 2418)

O documento de fls. 2419/2420 consistente em LAUDO TÉCNICO emitido pelo MinC/SAV, descreveu o estado técnico do material referente à obra REVOADA, (...) AVALIAÇÃO: Material apto a cumprir a função de cópia de preservação. Os problemas encontrados não colocam em risco a integridade da obra e/ou são sanáveis através de processos de restauração já conhecidos.

Pela análise da documentação acostada aos autos, verifica-se que a prestação de contas do filme "REVOADA" foi aprovada pelo Ministério da Cultura, sendo considerada boa e regular a aplicação dos recursos utilizados em sua produção.

A aprovação PARCIAL deveu-se apenas à existência de contencioso judicial perante a 16 Vara Cível do Estado da Bahia, estando, no entanto, aprovada a prestação de contas referente à primeira, segunda e terceiras parcelas do acordo.

Observe-se que o formulário de prestação de contas do Ministério da Cultura foi devidamente preenchido (2252/2272), e que os documentos solicitados quando da analise da prestação de contas (2382/2383 c/c 2388) foram encaminhados pela empresa REX SCHINDLER LTDA (2385/2387 c/c 2414).

Quanto ao laudo técnico produzido pela Secretaria de Audiovisual, este limitou-se a descrever o estado técnico do material recebido pelo MinC, avaliando-o apto a cumprir sua função, omitindo-se acerca da qualidade da obra produzida.

Verifica-se que as obrigações previstas pelo item 9 do edital (DAS OBRIGAÇÕES DA CONTRATADA) foram cumpridas pela empresa REX SCHINDLER LTDA, não havendo documentos novos que comprovem a aplicação irregular dos recursos destinados à execução do PROJETO.

Ante o exposto, considerando: 1) que a documentação de fls. 661/2442 não comprova, por si só, a existência de irregularidades na aplicação dos recursos públicos recebidos pela empresa REX SCHINDLER LTDA; 2) que o Ministério da Cultura aprovou a prestação de contas e avaliou o estado técnico do filme REVOADA como apto a cumprir a sua função; 3) que os documentos novos apresentados pelo Ministério da Cultura não apresentam indícios de malversação de verbas públicas, requer o MPF seja o autor intimado a manifestar-se acerca dos documentos de fls. 661/2442, bem como a apresentar novos documentos ou fatos que possam comprovar a existência de irregularidades ou PREJUÍZO ao patrimônio público, sob pena de liberação da última parcela do acordo, no valor de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais).

ISRAEL GONÇALVES SANTOS SILVA - Procurador da República.

15 setembro 2009

Roman Polanski

Cartaz japonês de Repulsa ao sexo (Repulsion, de Roman Polanski, realizado em meados dos anos 60, com uma delirante Catherine Deneuve no auge de sua beleza. Pouco depois seria convidada por Luis Buñuel para ser A bela da tarde (Belle de jour). Polanski, que se revelou altamente criativo nos anos 60 (nos seus curtas feitos na Polônia, a exemplo de O gordo e o magro, Dois homens e um armário...), lançou-se internacionalmente com A faca na água (ainda filme polonês) e surpreendeu com o ritmo, o clima, a atmosfera de Repulsa ao sexo e, em menor escala, o non sense de Armadilha do destino (Cul-de-sac). A sua obra-prima inconteste é O bebê de Rosemary (Rosemary's baby, 1968), que José Mojica Marins considera o filme mais aterrorizante jamais feito. Rosemary' baby, sobre introduzir a psicologia no filme de suspense, não possui os clichês do gênero. O apavorante emerge de situações aparentemente normais. Mach Beth, que Polansky adaptou pouco tempo depois de sua tragédia pessoal (a morte de sua esposa grávida Sharon Tate por um bando de fanáticos), não foi visto com a atenção devida quando do seu lançamento, mas é um grande filme. E ninguém, de sã consciencia, pode ficar indiferente a O inquilino (The tenant/Le locataire, 1976), que, parece, não tem em Dvd. O fato é que, salvo mais alguns filmes, o criativo Polanski do passado desapareceu.

13 setembro 2009

"Um corpo que cai", por Chico Lopes


Francisco Carlos Lopes (ou, simplesmente, Chico Lopes), escritor premiado (Nós das sombras, Dobras da noite) é crítico de cinema e programador do Instituto Moreira Salles em Poços de Caldas (Minas Gerais). Pelo muitos textos que tive a oportunidade de ler, Lopes tem um conhecimento bastante amplo da arte do filme e uma rara intuição para perceber os subtextos dos filmes que analisa. Encontrando em meus arquivos o texto que vai a seguir, decidi, sem pedir licença ao escritor, publicá-lo assim mesmo. Não creio que ele vá se importar. Trata-se de uma análise de Um corpo que cai (Vertigo), famoso filme de Alfred Hitchcock, considerado pela crítica mundial um dos cinco maiores de todos os tempos. Bom domingo e ótima leitura.
Ela passa. Não é, no entanto, um passar comum. Para que passasse por diante da câmera, para que fosse vista por um certo detetive, foi rigorosamente vestida e preparada por um homem muito esperto e maldoso, que precisava enganar alguém. Ela desliza, se exibe, submete-se ao exame do personagem. E ao nosso. Fisgando o homem para quem desfila, fisgou-nos. Ela é Madeleine, o impostor é Galvin Elster e o detetive, Scott.
Fomos fisgados por Hitchcock, o verdadeiro manipulador, o artífice dessa cena que não se pode esquecer. Que Scott, a seguir, já apareça no encalço dessa mulher pelas ruas de San Francisco, nos parece a coisa mais natural do mundo. Ele tinha conversado com Elster, que expusera o triste caso da esposa e de suas estranhas perambulações pela cidade, ele não quisera aceitar a tarefa de segui-la e descobrir suas intenções. Elster lhe pedira que fosse vê-la no restaurante Ernie´s e, claro – era preciso apenas que a visse para que a amasse. Nada de dizer “aceito a missão”. Para quê? Está tudo na imagem. Hitchcock é o rei das elipses significativas.
Madeleine Elster é uma mulher única, fabulosa, frágil, a um passo do Além, porque se julga possuída pelo espírito de uma antepassada morta e, em seu transe, está mais para o lado dos mortos que dos vivos. Tudo mistificação, como se verá depois, mas seria muito grosseiro decretar que é apenas um blefe que o diretor desmascarará lá pelo meio do filme; não: trata-se de uma dessas mistificações onde uma idéia transcendente se entronca com a realidade, a ponto de Morte e Vida, Terra e Céu, Aquém e Além, perderem suas fronteiras definidas, se intercambiarem e deixarem a nós, espectadores, em dúvida quanto à consistência do real.
Isso é Cinema, feitiçaria superior, onirismo privilegiado (visto que a consciência o acompanha), festa para a alma, que o que mais quer é o deslumbramento, a aventura, o romance para além da banalidade mortal, das contingências estúpidas. Mas que está, ai de nós! fadada a seguir miragem após miragem até ser acordada de seu sonho.
Não há o que eu não admire em Um corpo que cai. A sua abertura é já o começo do abismo, com toda aquela “op art” audaciosa para os anos 50. A vertigem, o rosto, a boca, o nariz, o olho sorvedor de uma mulher em cuja pupila de círculos concêntricos um corpo (uma alma) cairá. E a música de Herrmann, discípulo de Wagner e Bartók, é, para mim, a mais bela trilha sonora já composta. Não se pode imaginar música mais adequada, sensitiva, melancólica, inquietante, elegíaca, capaz de nos lançar para poços sem fundo de emoção com seu apelo de extraterrena beleza, de irremediável e sobrenatural fatalidade romântica.
Esse é provavelmente o mais romântico (no melhor sentido) de todos os filmes. O único onde o Amor se mostra em sua nudez de delírio, impossibilidade, intangibilidade, sofrimento e loucura. Tudo está preso a uma única idéia – a de encantamento, hipnose, mergulho nos abismos últimos da paixão (lá onde o Desejo toca a Alucinação).
Confesso meu fraco por filmes de amor impossível, a ponto de ter entre meus favoritos um melodrama como A ponte de Waterloo e de não resistir à choradeira de Suplício de uma saudade ou Tarde demais para esquecer.
Afinal, são os amores não realizados os que mais nobremente encarnam a idéia do Amor. Uma história de amor bem sucedida acabará onde? No maridão fumando seu cachimbo com o jornal em frente à tevê enquanto a mulherzinha troca as fraldas do bebê aborrecido. Nesse ponto pode-se entender a sedução do erro, do adultério, da perversidade, da homossexualidade: a mediocridade tem que ser evitada. Mas o impulso que empurra o homem para a fuga à mediocridade é o impulso que o empurra para o Inferno. “... à procura de luz”, como acrescentaria Lupiscínio Rodrigues (“Esses moços”), e algum crítico já chamou Um corpo que cai de A tragédia de Lúcifer.
Não se pode negar que um filme assim suscita reflexões em torno de problemas metafísicos, religiosos. Começa com uma barra de ferro situada entre o céu e a terra e a ela se agarra freneticamente um homem em fuga; há a perseguição da polícia a um bandido nos arranha-céus de San Francisco e aí o detetive, por acrofobia, deixa morrer um companheiro que procurava salvá-lo. De imediato entra-se no universo católico da Culpa. O filme será uma operação de redenção, mas redenção irônica – conquista-se a compreensão perdendo toda e qualquer construção do Desejo.
Scott é um detetive maduro, mas a sua acrofobia o vulnerabiliza, mostra a sua imaturidade, sua incapacidade de lidar com a realidade (alturas). Um crítico escreveu que essa acrofobia estaria relacionada à impotência sexual. Interpretações para essa deficiência simbólica não faltam. O certo é que ninguém melhor que James Stewart para encarnar esse personagem: ele é um homem claramente emotivo, crédulo, com um instinto protetor, um ar bom e confiável; é, em suma, um homem humano, crível, sem aquela aura do galã blindado e insensível que resolve tudo agindo.
“I look up, I look down”
O detetive é amado há muito tempo por uma certa Midge (Bárbara Bel Geddes) que é também a boa moça típica – prestativa, protetora, um pouco irônica, porque não consegue quebrar o celibato convicto que ele ostenta. Bonitinha, de óculos, ela é um pouco disponível e terra-a-terra demais. É curioso que tanto em Janela indiscreta quanto em Um corpo que cai Stewart encarne o solteirão resistente às mulheres, sempre com as idéias em outra parte que não aquela, muito real, que lhe é oferecida (e no primeiro, espantosamente, é a Grace Kelly que ele resiste). Esse homem afável e pacato tem compulsões pouco convencionais e Hitchcock devia deliciar-se com o contraste.
Midge tenta ajudá-lo a superar a sua acrofobia numa cena que é um primor de metáfora: ele tem a teoria de que poderá resolver o problema gradualmente – primeiro, subir num banquinho, depois numa cadeira mais alta etc. Ela lhe improvisa tais cadeiras, ele vai subindo em treino – “I look up, I look down” - mas, a uma certa altura, a vertigem do início do filme o possui e ele cai nos braços dela. Em outro, a queda poderia ficar até um pouco “desmunhecada”. Mas com Stewart é de uma estranha fragilidade masculina que não desviriliza – ao contrário: comove. Vertigo é o filme de um diretor sensível e de bom gosto. Referir-se ao sexo de maneira indireta e delicada é ainda a melhor maneira de captar toda a sua importância, o seu significado.

Os círculos concêntricos
Incumbido de seguir Madeleine Elster, Scott seguirá ponto por ponto a isca lançada por seu marido, Galvin Elster: ela visitará o túmulo de Carlotta Valdez (a bisavó suicida), verá seu retrato num museu (ocasião em que ele constata que a viva usa o mesmo coque da morta, com sua vertiginosa espiral), comprará numa floricultura um buquê idêntico ao que está nas mãos da mulher do quadro, seguida a uma distância prudente. Madeleine também se hospeda num hotel que foi a casa da falecida, que morreu louca, perguntando pelas ruas “Onde está a minha filha?”.
Essa perseguição lenta, circular, é como um mergulho na feitiçaria dos círculos concêntricos da abertura. É poderosamente erótica – porque, menos que perseguição, sentimos que se trata de voyeurismo, desde o primeiro momento, quando fomos apresentados a uma mulher espetacular e ímpar - mas esbarra na Morte e em símbolos religiosos (o cemitério onde jaz Carlota fica atrás de uma igreja). Scott nunca toca na mulher, que está lá, impalpável, linda e exposta a sabe Deus quais fantasmas, agindo na mais perfeita inocência aparente em sua rotina de suave e triste insanidade. Só fará isso quando a salvar de afogamento voluntário na baía de San Francisco, sob a Golden Gate.
A cena da tentativa de suicídio é de grande beleza: ela despetala o buquê idêntico ao do quadro (em primeiro plano) nas águas e a seguir, como que para também desfazer-se, despetalar-se, mergulha. Ele a tira da água para colocá-la em seus domínios, no quarto de apartamento de solteirão, e a ouvimos sonhar, dizer “Where is my child?”. Ficamos então sabendo que ela não sabe o que faz, que está ausente em momentos como o da Golden Gate; a confissão acentua o senso de proteção de Scott, lisonjeia-lhe a masculinidade e o desejo.
Desejo correspondido. Ela também está encantada por seu protetor. E começa a descrever-lhe o desespero em que vive, com as imagens de possessão que a assediam. Pede para que ele a ajude. Há um passeio num bosque de sequóias no qual o filme parece irradiar uma melancolia infinita. É quando o romantismo desse projeto parece mais agudo – sofremos porque somos criaturas, porque somos frágeis, porque vamos morrer, porque estamos submetidos a um destino de precariedade. A música de Herrmann instala-se aí como elegia, nos tons mais desoladores. Afinal, as sequóias duram mais que as pessoas.
Sabemos como isso acabará: ela o arrasta para a igreja de San Juan Batista para localizar algum nexo na busca de sua identidade despedaçada pela possessão. Mas ela sobe para a torre onde, devido à acrofobia, Scott não pode chegar, e atira-se de lá. Segue-se um estado de quase catatonia no detetive : ele olha “para cima e para baixo” enquanto é julgado inocente pela morte de Madeleine, tendo o júri levado em conta a sua acrofobia.. Elster o consola: “Sabemos quem matou Madeleine”. Diz que irá para a Europa tentar recomeçar a sua vida; é indulgente com Scott, mas este já está em outro mundo.

Os dilemas se desdobram
O detetive vai para uma clínica psiquiátrica. Midge está por perto, mas ele mal a vê. Curiosamente, é submetido à musicoterapia, ao mesmo Mozart que ele não queria ouvir no toca-discos no apartamento da moça, no início. Mozart nada resolve, nada pode tirá-lo dessa depressão. Midge desiste. Ela bem que havia tentado, e pateticamente até fizera uma paródia do retrato de Carlotta Valdez pondo seu rosto no lugar do da morta. Mas, como, disponível, prosaica, poderia competir com uma mulher que sugeria o Além?
Os pesadelos de Scott, desenhados como arte psicodélica precoce (só nos anos 60 aquilo entraria decididamente em moda), são efeitos especiais que farão rir os adeptos de Lucas, Spielberg e Peter Jackson das gerações recentes. Mas, eficientes e coerentes com a trama, sugerem muito. Com a música de Herrmann agora evocando a Espanha, vemos a Carlotta Valdez do retrato ao lado de Galvin Elster na torre da igreja de San Juan Batista e vemos, finalmente, um túmulo aberto para o qual Scott se dirige e, ao olhar para dentro, gritará, acordando.
Saindo da clínica, Scott vê Madeleines por toda parte. Repisa o percurso da perseguição, vai aos lugares que ela freqüentava. Refaz os círculos que percorrera, apenas para constatar que a nada mais levam. Finalmente, quando parece já resignado a um desânimo eterno, encontra na rua uma versão morena de Madeleine.
Diz chamar-se Judy Barton e o convence até certo ponto. Mas é a própria. Não havia Madeleine. Judy Barton era a amante de Elster. Os amantes arquitetaram o plano contando com a acrofobia de Scott: matariam a verdadeira Madeleine (que o detetive nunca viu, tampouco o espectador; era apenas um nome) e oficialmente a coisa passaria por suicídio, suicídio que seria corroborado pelo testemunho de Scott.
Diabólico, sem dúvida. Mas talvez um pouco cerebral demais. Inverossímil que alguém planejasse um crime assim tão refinado e contando com o favor do acaso em tantas variantes imprevisíveis. Mas Hitchcock, ele próprio o disse, acha que a verossimilhança é coisa sempre reivindicada por indivíduos sem imaginação. Perfeito. Tem-se que aceitar Um corpo que cai como alguma coisa bem além da mera intriga policial. É um tratado sobre a aparência e seus avessos, sobre a sedução e seus meandros de Idolatria e Culpa.
A força dessa história e desse drama é tal que passamos por cima de muita coisa – temos que ignorar, por exemplo, que a maquiagem que a produção arranjou para a Kim Novak morena é exagerada, ridícula, quase caricata.
Scott quer a ressurreição de Madeleine. Judy, que é a cópia, na verdade a própria, na verdade ninguém, compreende que esse homem (por quem, coisa que escapou aos planos com Elster, ela se apaixonou) quer refazer a morta detalhe por detalhe. Por amor, estóica, medrosa, aceita-lhe as exigências: o tailleur, o penteado, a cor do cabelo de Madeleine.
Há uma cena inesquecível: quando ela concorda em ir providenciar um último detalhe – o coque – e Scott a aguarda. Ouve-se o abrir de uma porta como se ouvisse o abrir de um caixão de defunto. Ela retorna do mundo dos mortos! Nada mais falso e mais comovente que essa ressurreição – o fetichismo e a necrofilia do personagem aí parecem claros, mas tratados com suprema poesia. Ele não tardará a descobrir que foi enganado. Levará Judy/Madeleine de volta à torre, vencerá a acrofobia, mas dessa vez a perderá de verdade. Para sempre. A chegada de uma freira assusta Judy, que despenca. O filme termina com os sinos sendo tangidos pela freira e com um “Deus tenha piedade...”
Convém não esquecer que, no labirinto de invencionices da falsa Madeleine, ela havia dito que uma certa “Irmã Teresa a repreendia”. Judy engendrou uma fantasia de que se tornou vítima. E onde fica o Real nisso tudo?
Acorrentada a uma imagem
Enfatiza-se muito o drama do detetive, mas pelo lado dessa mulher ele não foi menor. Uma moça simples, romântica, que chega do interior e, movida por ambição, aceita entrar no plano de um homem rico que precisa matar a mulher.
Quem é Judy Barton? Quando Stewart a encontra na rua e a segue até seu apartamento, primeiro agirá como uma moça direita que, naturalmente, tem que repelir um desconhecido que teve a audácia de bater à sua porta. Mas, deixa-o entrar, porque percebe seus modos de homem respeitável e entende seu sofrimento. Mas, mostra-lhe a sua identidade – é do interior, do Kansas, e há até uma foto de família numa cômoda, para atestar suas origens. Trabalha numa loja próxima dali, a Magnin´s. Estamos diante de sua verdade – não há dúvida que ela está satisfeita por revelá-la ao homem cuja paixão despertou. Mas, a seguir, compreenderá que está acorrentada a uma imagem num grau muito além do planejado – esse homem não está interessado nela, mas na outra, na Grande Outra que foi perdida. Entendemos o patético disso, porque o que ela deseja é perfeitamente legítimo, mas foi arruinado pela impostura desde o momento em que submeteu-se à trama de Elster. Para que Scott a ame, ela terá que ser sempre o que não é. Sendo o que não é, ela revelará quem de fato é: cúmplice de uma história sórdida. O meio-termo que aceita é o grande suspense da história – e é um dos mais estrangulados e neuróticos casos de amor já projetados na tela, porque esses amantes, se souberem o que de fato os une, terão seu amor inteiramente devastado – ele só poderia subsistir nas condições mais rarefeitas e inquestionadas de idolatria.
Judy Barton é, na verdade, uma garota de programa. Nada disso precisa ficar muito claro no filme, e há um puritanismo evidente em Hitchcock, que, além de tudo, fez seu trabalho na linha do “film noir”, que é tradicionalmente misógina – nela, as mulheres lindas, desejadas por detetives ou heróis honestos, são sempre ardilosas, jamais confiáveis, e podem, pela sedução, fazer com que o herói mergulhe no inferno; é, aliás, com a finalidade de tirá-los do “bom caminho” que comparecem na tela (lembremos, só como exemplo, a consumada tarântula vivida por Barbara Stanwick em “Pacto de sangue”, obra-prima de Billy Wilder).
Mas, Judy Barton parece ter dimensões mais humanas que o filme apenas roça. Ela faz a jovem que sai do interior em busca do sucesso numa metrópole e, com certeza, na profissão modesta de uma vendedora de loja, não o encontra. Tem, no entanto, a beleza a seu favor. E, possivelmente, é fascinada pela idéia de ser outra, de perder-se numa imagem ideal (fascínio que deve decorrer da própria idéia de ascensão profissional que a move). Portanto, presta-se a um papel arriscado, em que sua beleza – só ela, como uma casca que poderá usar e descartar a bel-prazer – terá importância fundamental. Vende-se a uma imagem. Pode-se mesmo pensar que Elster, cuja intenção principal é fazer de Scott testemunha favorável a seu crime, tem um fundo homossexual: a idéia de dispor daquela mulher, de ter aquele corpo e aquele rosto para atrair Scott o fascinaria em mais de um sentido. Em todo caso, Judy é o tipo de carreirista que tem sua dose de romantismo – e por aí é que se vulnerabiliza, e é por aí que está a sua grandeza, a sua humana contradição.
“Um corpo que cai” teve seus problemas de produção. Um deles – que é notável por remeter, metaforicamente, à própria situação do filme – foi que o papel dessa mulher dupla estava destinado à atriz Vera Miles. Tudo fora planejado pelo meticuloso Hitchcock, maquilagem, vestidos, mas Vera, casada com um ator horrível, Gordon Scott (um dos piores Tarzans que o cinema teve), engravidou. O diretor ficou arrasado com isso, e relutou muito em dar o papel a Kim Novak. Brigou com ela, assustando-a com seu despotismo, dizendo que ela não poderia usar roupa alguma além daquelas que já pré-determinara. Kim se submeteu, e fez o papel de sua vida.
No entanto, Hitchcock nunca a achou muito adequada, reclamava que ela não usava “soutien”. Sempre preferiu, para suas estrelas, uma certa aura de recato sexual. Kim era sensual, apetitosa demais, na linha de Marilyn Monroe, a deusa dos anos 50. Isso deu ao personagem de Madeleine/Judy uma força inesperada, contra todos os preconceitos do diretor. E é preciso registrar que Kim sempre foi subestimada como atriz. Porque mesmo nesse filme, onde esteve sob uma batuta restritiva, humilhada por ser atriz-substituta, ela está magnífica, e consegue fazer-nos pensar numa outra mulher por trás daquela loira imaterial, gélida e “hitchcockiana” que foi obrigada a fazer.
Judy Barton transcende a fêmea-sedutora-fatal típica do “film noir”. Ela aceita fazer a isca, mas planta as sementes de sua destruição, porque o teatro que aceitou representar tem mais de si do que imagina, tanto que uma paixão real surge do emaranhado de irrealidades. A sedutora, apaixonando-se pelo seduzido, é obrigada, pelo próprio amor que suscitou, a reconstituir uma fantasia que vai levá-lo a conhecer a verdade. De um amor alimentado por tantos artifícios, pode-se dizer que só é possível libertar-se pela morte do sonho ou pela morte, pura e simplesmente.
Para a mulher, acorrentada a uma imagem que o homem dela fez, resta pouca alternativa entre fazer a demoníaca ou a santa. Como Judy é, positivamente, um pouco disto e daquilo, é tragicamente punida. Ela não consegue impor a sua identidade sobre um homem que está impregnado de uma obsessão que precisa ser desfeita, ainda que isso custe a imolação da mulher que ele amou – ou acreditou amar. Madeleine/Judy são a mesmíssima mulher-objeto, o mesmo objeto intercambiável na disputa, no duelo entre dois homens. São veneradas porque estão proibidas de terem qualquer espécie de existência real, concreta. Projeções, as correntes da misoginia as prendem para todo o sempre.
Quanto a Scott, seu óbvio alter-ego, Hitch, seguindo a sua linha de pessimismo católico, parece nos dizer que o amor é pura fantasmagoria, que o seu processo idólatra é o mais precário dos empreendimentos da Criatura. Amar a Criatura, querer mudar os desígnios do Criador, querer ser o Criador, intervir no Destino com desesperadas fabricações humanas, oriundas do Desejo, é tragédia na certa. O homem, privado de Deus, joga seu amor, sua esperança, seu sonho de onipotência em criações só suas, que não podem nem de longe substituir, em verdade e duração, as de seu arqui-rival contra cujo poder tudo é inútil. Ele tem que cair, cair quantas vezes forem necessárias, até dar-se conta de que entre a o Céu e a Terra há uma distância insuperável.
A Queda é essa condenação ao mundo incerto, ambíguo, senão diabólico, das aparências, onde a Verdade só é encontrada ao preço da desilusão.

12 setembro 2009

Anselmo Duarte recebe alta do Incor


Notícia alvissareira para os admiradores de Anselmo Duarte. Apesar de sua idade provecta, deu a volta por cima e já recebeu alta do Incor. Publico aqui uma nota do presidente do Instituto Anselmo Duarte, Richard Hooper Duarte, que dá notícias sobre o seu infortúnio e padecimento.
É com comovido alívio que este Instituto anuncia que o nosso Presidente Vitalício, Anselmo Duarte, recebeu ontem, 10 de setembro de 2009, Alta Clínica do Hospital do Coração - INCOR, em São Paulo, após 24 dias de internação em grave estado de saúde, causada por uma ocorrência de comprometimento de anemia profunda em virtude de perda sanguínea pela urina causada por um pólipo maligno (câncer) na bexiga e suas conseqüências laterais cardiovasculares e renais.
A equipe médica liderada pelo Dr. Roberto Rocha Giraldez, da Unidade Clínica de Conorariopatia Aguda do InCor, resgatou com eficácia toda a sua experiência de prática clínica, aprofundada pela atualizada vigilância sobre os mais recentes relatos da investigação clínica internacional cardiovascular e renal, para não somente preservar a integridade física de Anselmo Duarte mas, principalmente, garantir-lhe a esperança de uma sobrevida que nos brinda, a todos que têm orado e torcido pelo nosso mais cativante cineasta, a continuidade do seu inspirador convívio.
O resgate clínico de Anselmo Duarte confirma a exponência qualitativa referencial do InCor de São Paulo no cenário mundial da ciência conorariopática.
A recuperação de Anselmo surpreendeu a todos, médicos e leigos. Um "ancião" em seus 89 anos de vida, após sofrer o episódio de comprometimento renal e cardiovascular que o levou à internação hospitalar, reverteu, em menos de um mês, da cruel e exasperante nuance do impossível à normalidade.
A fortaleza física imponderada do Anselmo em seu histórico de enfrentamento às adversidades frustrou as péssimas expectativas que se lhes apresentavam as iniciais projeções dos médicos na instância de sua internação.
Genética, ciência médica ou intervenção da Providência? Só Deus pode responder se o câncer em sua bexiga, que revelou-se superficial, sem metástase e, interrompido o sangramento do pólipo maligno, após sua remoção, reverteu a anemia aguda, pelo procedimento médico ou ...pela intervenção divina.
Aos 89 anos, o ambiente de expectativa para a sobrevivência de Anselmo era de genuíno e estatístico pessimismo. Contudo, na continuidade da sua sofrida internação no InCor, sua pressão arterial, seu nível de comprometimento renal, as medições das taxas de hemoglobina e de creatinina, estes e todos os parâmetros clínicos relevantes ao julgamento para a continuidade da estratégia de recuperação clínica de Anselmo, trouxeram à equipe do Dr. Roberto Rocha sólidos elementos para determinar, sem hesitação, uma "milagrosa" "ALTA" hospitalar.
Este seu atual estado de estabilidade continuará a ser preservado por tratamento medicamentoso, orientado pelo InCor e instrumentado pela família do cineasta.
Cabe aqui, também, nosso mais profundo agradecimento ao Governador José Serra, que na pessoa dos seu Assessor Especial na Casa Civil, Edmur Mesquita, soube, com descortino e sabedoria, como reagir com agilidade providencial em resposta as necessidades de urgência hospitalar do velho cineasta paulista garantindo-lhe remoção imediata para internação hospitalar urgencial em atendimento aos apelos da família de Anselmo e ao do povo paulista.
Graças a Deus, às orações dos milhares de admiradores, Brasil e mundo afora e, principalmente, à equipe médica do Dr. Roberto Rocha e à impecável dedicação amorosa do corpo profissional de enfermagem do InCor, o nosso Anselmo, o garoto dos pés descalços de Salto, está de volta ao nosso convívio, consciente e alerta para continuar a nos celebrar seus exemplos de genialidade para o porvir da criatividade humana.
Ricardo Hooper Duarte
Presidente
Instituto Anselmo Duarte

10 setembro 2009

"A marca da maldade", de Orson Welles

Orson Welles - numa interpretação inexcedível, obeso, desfigurado, para dar a impressão da configuração da maldade - é Hank Quinlan, policial de uma cidade da fronteira entre o México e os Estados Unidos, que tem o costume de fabricar as provas com as quais acusa os supostos culpados perseguidos. Um colega mexicano, Vargas (Charlton Heston, que mostra, aqui, que não é apenas ator de épicos hollywoodianos, mas um ator de amplos recursos), que acaba de se casar com uma jovem americana, Suzie (Janet Leigh) vem a descobrir os arranjos de Quinlan e ameaça desmascará-lo. Com a ajuda de Grandi (Akim Tamiroff), um traficante local que serve à polícia com informações, Quinlan faz seqüestrar e drogar Suzie, matando logo em seguida seu cúmplice no quarto do hotel onde ela se encontra trancafiada. Uma sucessão de acontecimentos proporciona a um fiel subordinado de Quinlan, Menzies (Joseph Callea) a constatação de seu caráter e acaba ajudando Vargas no total desmascaramento de Quinlan.

Touch of evil (o toque do mal, se traduzido ipsis litteris) marca o retorno de Orson Welles a Hollywood após uma ausência de dez anos. Os constantes estouros nos orçamentos, o seu comportamento muito além dos parâmetros convencionais, e as ameaças de interferência dos estúdios em seus trabalhos, fizeram-no se afastar da meca do cinema. Na década que fica fora (1948/1958) realiza, porém, na Europa, alguns filmes, a exemplo de Othello (personalíssima versão do texto célebre de William Shakespeare, que leva dois anos para ser realizada: 49/51), e Grilhões do passado (Mr. Arkadin ou Confidential report, 1955).

A marca da maldade é montado, na sua versão final, à revelia de seu autor. Há alguns anos, encontradas as anotações de Welles sobre como proceder à montagem do filme, Touch of evil é remontado tal qual a concepção do realizador de Cidadão Kane (as duas versões são exibidas, há cinco anos, no Telecine, quando este ainda é Classic e não Cult, com um documentário especial sobre as diferenças entre as duas cópias).

Apesar de sua base literária como ponto de partida do roteiro, uma sub-literatura de Whit Masterson (aliás, Hitchcock sempre diz que nunca gosta de fazer adaptações de grandes livros, a preferir a sub-literatura encontradiça em bancas de jornal, as chamadas pulp-fictions, mas a sua extração é sempre de um procedimento cinematográfico exemplar e reveladora de uma escrita que estabelece uma mise-en-scène de puro cinema, de pura estesia), A marca da maldade é uma de suas obras mais interessantes e reveladoras. Alguns historiadores, inclusive, estão a considerá-la como mais importante ainda do que Citizen Kane (o que se nos afigura um absurdo, ainda que Touch of evil seja um filme excepcional, e grandioso, e impactante, e genial).

A figura de Quinlan representa à perfeição a postura wellesiana ante a sociedade em que vive. Não que o autor se identifique com o personagem. É que, através de sua monstruosa personalidade, submete, com ela, a crítica ao mundo que o rodeia e no qual certos valores deixam de ter vigência. Em torno da figura de Quinlan, evolui uma série de personagens que, na verdade, não são mais que elementos de uma antítese mediante a qual Welles pretende chegar a uma visão dialética. E quem faz o resumo desta visão é a cigana interpretada por Marlene Dietrich no final do filme numa espécie de epitáfio cínico e emocionado.

O fabuloso plano-seqüência inicial, longo e complicado, fica definitivamente nos anais da história do cinema mundial. E dá a tônica estilística de A marca da maldade, uma das mais barrocas de seu autor (a influência do expressionismo alemão, com o contraste das sombras e das luzes, é impressionante). Welles utiliza os inquietantes elementos de uma trama enviezada e a particular estranheza dos cenários para compor uma obra em que tudo está deformado por uma ótica com freqüência aberrante.

Com a oportunidade de comparar as duas versões de A marca da maldade (a montada à revelia e a montada segundo as anotações do diretor), vê-se que o plano-seqüência do início, na versão oficial, é desfigurado com a colocação dos letreiros de apresentação, a ofuscar a visão das pessoas, do movimento, e dos objetos dentro do enquadramento. Welles, como de hábito, na sua concepção original, elabora o plano-seqüência absolutamente desprovido de qualquer material de procedência que não a da imagem.

A seqüência de Janet Leigh no motel parece ter inspirado Alfred Hitchcock a convidar a atriz para o elenco de Psicose (Psycho). Não resta dúvida de que tudo indica que a atmosfera reinante no motel wellesiano de A marca da maldade tem tudo a ver com o motel hitchcockiano, com Norman Bates à la carte, de Psycho e, inclusive, a distância entre os dois filmes é curta: dois anos. O velho Hitch há, também, de sofrer a angústia da influência de Harold Bloom.

Muitos críticos e historiadores, a exemplo de Peter Bognadovich, acreditam que A marca da maldade possui uma chegada de Welles a este momento de sua vida com o mesmo cansaço que Quinlan experimenta em relação a Kane, cansaço que emerge dos anos transcorridos, da reflexão, da angústia e da desesperança.

09 setembro 2009

XXXVI Jornada Internacional de Cinema da Bahia

Começa a XXXVI Jornada Internacional de Cinema da Bahia, que vi nascer em 1972 restrita a mostra à Bahia. Depois se expandiu e, em 1985, tornou-se internacional. Desta vez as atividades estão concentradas no Espaço Unibanco Glauber Rocha na Praça Castro Alves, a praça do poeta. Clique na imagem para vê-la melhor.

07 setembro 2009

"Dona Flor" e Ernesto Geisel


Publiquei este texto há algumas semanas no Terra Magazine.
1) Luiz Carlos Barreto, numa longa entrevista à TV Senado, que passou recentemente, conta a sua trajetória de homem de cinema e, lá pelas tantas, fala de Dona Flor e seus dois maridos, o maior sucesso de bilheteria de todos os tempos baseado em romance homônimo de Jorge Amado e dirigido por seu filho, Bruno Barreto. O ano, 1976, a ditadura militar exercia poderosa censura sobre todos os filmes. E implicou com Dona Flor. Queria proibi-lo. Barreto foi à Brasília tentar convencer os censores, mas tudo em vão.
2) De repente, ao sair de um ministério, encontra, por acaso, Amália Lucy, filha de Ernesto Geisel, o general de plantão, a quem se atribui o dito de Chico Buarque de Holanda ("você não gosta de mim, mas sua filha gosta¿). Barreto já conhecia Amália, e ela, surpresa, perguntou o que ele estava a fazer em Brasília. O produtor disse a ela que Dona Flor e seus dois maridos tinha sido proibido pela censura. Mas por quê? indagou a filha do general, que manifestou desejo de ver o filme.
3) Barreto marcou um encontro numa sala de exibição brasiliense e projetou Dona Flor para Amália Lucy. No final, ela revelou a ele ter gostado muito do filme e não via razão para ser proibido. E disse a Barreto: "Quem gostaria muito de ver seria meu pai, pois ele gosta dos romances de Jorge Amado" O célebre produtor, surpreso, ia dizer alguma coisa, quando ela o interrompeu: "Você não conhece meu pai. Vamos marcar uma sessão no Palácio do Planalto. Marcada a exibição, Barreto entrou meio constrangido para projetá-lo para Geisel e encontrou uma sala toda equipada para a sessão especial, com farta distribuição de 'scotch¿ e salgadinhos.
4) Barreto conta que Ernesto Geisel, durante o transcorrer da projeção, riu muito e, no final, congratulou-o por ter feito um filme ágil e engraçado. Disse que entraria imediatamente em contato com o Ministério da Justiça para a liberação de Dona Flor.
5) Dona Flor e seus dois maridos foi filmado em Salvador em 1975 e me lembro de ter acompanhado a filmagem de uma cena no Largo da Palma. Terceiro filme do jovem Bruno Barreto, que tinha em torno de 20 anos (o primeiro, Tati, a garota, baseado em Anibal Machado, o segundo, A estrela sobe, segundo Marques Rabelo), Dona Flor foi lançado no Brasil inteiro e na Bahia em mais de seis salas simultaneamente. Sucesso imenso, filas quilométricas. Mas aconteceu um fato peculiar.
6) Programado para ser exibido em seis salas, na segunda (dia em que os lançamentos entravam em cartaz), o distribuidor da Embrafilme somente tinha recebido em seu escritório apenas cinco cópias e não haveria tempo hábil para mandar buscar a que faltava. Mas, de repente, surgiu uma idéia. A cópia do cinema Bahia poderia ser exibida também no Tamoio, sala perto daquela. Para funcionar, no entanto, era preciso que os horários fossem diferentes. Naquela época, um filme de longa-metragem tinha, a depender de sua duração, cinco, seis latas, contendo, cada uma, um rolo ou carretel. Exibido o primeiro rolo no Bahia, um funcionário da Embrafilme corria para levá-lo ao Tamoio. E assim sucessivamente.
7) Apesar de Barreto ter contado que Geisel tinha ordenado a liberação do filme, o que, realmente, aconteceu, a minha memória me diz que houve o corte de uma cena, quando há um coito anal entre José Wilker e Sonia Braga. Mais de 20 anos depois, quando o filme foi relançado em cópias novas, a cena cortada foi reposta. Se, em 1976, Dona Flor e seus dois maridos foi um êxito sem precedentes, quando do seu relançamento, duas décadas passadas, revelou-se um fracasso retumbante no mercado exibidor.
8) Sonia Braga tinha feito uma Gabriela maravilhosa para uma novela da Globo e o seu aproveitamento como outra personagem amadiana, a Dona Flor, deu muito certo, a ponto do próprio escritor ficar encantado com ela. Poucos anos depois, 1982/83, Barreto a dirige numa produção internacional no papel de Gabriela, mas o filme não soube captar, com a desenvoltura necessária, a crônica de uma cidade de interior que é Gabriela, cravo e canela. No elenco, Marcello Mastroianni. Mas nem mesmo assim conseguiu as graças do público.
9) Em Dona Flor e seus dois maridos, além da de Wilker e Braga, destaca-se a primorosa interpretação de Mauro Mendonça, como o segundo marido de Flor. O primeiro, Vadinho/Wilker, farrista, boêmio, morre de repente num domingo de Carnaval, mas o seu espírito reaparece a tentar a bela Dona Flor. Um triângulo amoroso com acentos espíritas, um ménage-a-trois atípico, portanto.
10) A trilha musical é funcional e eficiente a cargo de Francis Hime. E há, ainda, a letra e música de Chico Buarque de Holanda na interpretação de Simone (O que será, o que será...). Murilo Salles, antes de se tornar realizador, é o diretor de fotografia e, no elenco, vários atores baianos como Nilda Spencer, Mário Gusmão, Dinorah Brillanti, Haydil Linhares, João Gama, Wilson Mello, entre outros. Nesta época, meados dos anos 70, a Bahia virou décor de alguns filmes, entre os quais Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, também baseado em romance homônimo de Jorge Amado. Nelson, porém, o grão-duque do cinema brasileiro, se tem resultados excelentes quando faz adaptação de Graciliano Ramos (Vidas secas, Memórias do cárcere) não consegue transferir os romances do escritor baiano para um resultado cinematográfico convincente (Tenda dos milagres é melhor, mas Jubiabá decepcionante, ainda que com a ajuda de capital internacional).

Quem se lembra de Lolló?

A mulher mais bela do mundo, diz o título de um filme com esta diva do cinema que, talvez, não seja mais nem conhecida nem lembrada pela nova geração: Gina Lollobrigida. La donna più bella del mondo, de 1959, de Robert Z. Leonard, que tem, no seu elenco, Vittorio Gassman, Robert Alda, Anne Vernon (a mãe de Deneuve em Les parapluies de Cherbourg, 1964, de Jacques Demy), foi um dos primeiros filmes que vi na vida. E que desapareceu de meu horizonte de cinéfilo. Mas é bom clicar na imagem para vê-la ampliada em outra janela e para que Gina possa ser contemplada no esplendor de sua beleza.

04 setembro 2009

A hora do cinema digital


Um dos mais competentes especialistas em cinema digital no Brasil., Luiz Gonzaga Assis De Luca acaba de lançar A Hora do Cinema Dgital - Democratização e Globalização do Audiovisual pela Imprensa Oficial de São Paulo dentro da Coleção Aplauso (Cinema & Tecnologia). Num momento em que o processo digital está a revolucionar não somente a produção, mas, também, a exibição cinematográficas, esta publicação é de leitura imprescindível, principalmente quando se verifica que várias pessoas ainda não entenderam bem o que vem a ser o digital em oposição ao antigo celulóide. Com excelente prefário de Gustavo Dahl, o livro de Luiz Gonzaga De Luca vai a fundo na questão.

O autor é homem de cinema, conhece profundamentos as injunções do mercado exibidor. Quando trabalhou na extinta Embrafilme, a sua participação foi decisiva para fazer da empresa uma líder do mercado, a atuar como seu distribuidor responsável por um período de três anos. Finda a experiência, que, para ele, foi muito importante, trabalhou na produção de desenhos animados e licenciamento de personagens e se assinala aqui outro pioneirismo: a da distribuição do videocassete doméstico. Há 20 anos, atua no setor da exibição cinematográfica, ocupando, atualmente, o cargo de diretor de relações institucionais do Grupo Severiano Ribeiro, a maior empresa exibidora de capital nacional. É também professor do curso de pós-graduação Film & Television Business da Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Administração Pública,doutorou-se em Ciências da Comunicação na USP. Em 2004, lançou, também pela Aplauso, Cinema Digital: Um Novo Cinema?
Sobre o livro recente, que já inicei a sua leitura, algumas informações tiradas do site da Livraria Saraiva, onde a publicação pode ser encontrada (inclusive pela internet), entre outras boas livrarias brasileiras:
"As tecnologias digitais vêm provendo a substituição dos equipamentos de cinema. Embora muitos filmes já sejam gravados com câmaras digitais e existam mais de 6 mil cinemas digitais no mundo, ocorrem sérios entraves na substituição tecnológica, a começas pelas dificuldades de obtenção dos recursos necessários para financiar a compra dos novos aparelhos. A Hora do Cinema Digital - Democratização e Globalização do Audiovisual não é apenas uma atualização do livro anterior de Luiz Gonzaga Assis de Luca, Cinema Digital - Um Novo Cinema?. Mais do que responder às questões tecnológicas que ficam em aberto no livro anterior, e que se solucionaram nos últimos anos, discute as questões decorrentes da convergência digital que, ao mesmo tempo, une e separa a indústria cinematográfica. Este livro preenche uma lacuna na literatura da área, abordando um tema atual que interessa não só aos profissionais e aos interessados no cinema, como aos que atuam nas diferentes atividades do audiovisual: distribuidores de homevideo, criadores de games e produtores de programas para diferentes meios e veículos: televisão, telefonia, eventos e internet."

02 setembro 2009

A pulverização do cinema

Texto publicado no site Terra Magazine em 01.09.2009.
Apesar de já ter me referido, aqui, diversas vezes, não custa nada repetir que a estética do videoclip incorporada à narrativa cinematográfica contemporânea, principalmente aos produtos oriundos da indústria cultural de Hollywood, destrói o prazer de ver um filme pela impossibilidade de contemplá-lo devidamente. Para acompanhar a velocidade das mentes internéticas, a indústria descobriu que a melhor fórmula de envolver o espectador que não pensa e é apático é aquela baseada nos cortes incessantes e nas tomadas bem rápidas.

Até mesmo filmes razoáveis e bons, como Frost/Nixon, de Ron Howard, estão estruturados nesta estética, que já foi denominada de estética da tesourinha. Poucos os realizadores que possuem o conceito de duração das tomadas com a exatidão e o ritmo desejados pelo grande cinema. Para ficar num exemplo: Stanley Kubrick possuía um sentido exato da durée do plano. O conceito bem aplicado faz com que o espectador se envolva no espetáculo, a se tornar, dele, cúmplice. O que não é possível no cinema montanha-russa dos tempos atuais.

O público adolescente e aborrecente, que é o alvo da indústria, não pensa, não contempla, e faz da ida ao cinema uma das fases do shoppear. O filme é o que menos conta para a platéia de adolescentes que lotam as salas dos complexos aos sábados. Os espectadores atendem aos celulares e conversam o tempo todo, riem fora de hora, põem os pés (as patas) nas cadeiras dianteiras, quando não infernizam quem está na frente com toques infernais, e há, atualmente, uma tendência a se falar constantemente não somente ao telefone (que virou uma praga) como também com o amigo(a) ao lado. Sem falar, é claro, na comilança desenfreada (bacias e não mais saquinhos de pipocas, cheerburgueres, guloseimas gerais).

A conclusão a que se pode chegar é que o filme montanha-russa é reflexo da mentalidade da platéia, pois a indústria somente se interessa pelo lucro e, portanto, oferece apenas o que público solicita. E as pessoas que vão hoje ao cinema não se interessam em espetáculos engenhosos e inteligentes. Basta que possuam ação, tensão, efeitos especiais mirabolantes. A ausência do humanismo nos filmes contemporâneos é flagrante. Os personagens não possuem aquele tão necessário poder de verdade, de convencimento, mas são apenas e somente marionetes condutoras da ação proposta, títeres robóticos de um cinema sem alma.

Por outro lado, nesta crise da cultura contemporânea, há a tendência de se diluir autores importantes e viscerais, a exemplo do genial Nelson Rodrigues. Como bem observou a ensaísta de cinema Andrea Ormond em seu blog, Estranho encontro, ao fazer uma análise das adaptações cinematográficas do grande dramaturgo, a tendência de diluir é uma constante nestes tempos contemporâneos numa espécie assim de "imitação da arte".

A onda politicamente correta que assola e destrói a liberdade e a criatividade é outro fator que ajuda muito a crise cultural. Havia uma atitude visceral que agora se edulcora. Não existem mais autores de visceralidade sedutora como Pier Paolo Pasolini (principalmente no escatológico Saló, seu canto de cisne), Marco Ferreri (A comilança), entre muitos outros que vingaram no pretérito. Uma tendência dessa diluição crítica pode ser encontrada como exemplo em Beleza americana, de Sam Mendes, uma visão aparentemente crítica, porém dentro de uma vontade de edulcorar que sufoca o que se pretende ser visceral. Seu mais recente filme, Apenas um sonho, apresenta uma evolução dramática e cinematográfica.

Apesar da salgalhada desse artigo, há elos comunicantes entre os assuntos abordados, que refletem bem o fundo do poço a que se chegou no que teimam em chamar pretensiosamente de contemporaneidade: o comportamento selvagem da platéia das salas exibidoras, a apatia diante da arte, a ausência de humanismo nos filmes e na vida, a diluição de temáticas fortes e de autores viscerais em função de uma apreciação dentro de moldes à la delicatessen, a transformação do transitar na urbis em shoppings centers com seus imensos fasts foods.

E as assim chamadas salas de arte não se encontram livres da agitação. Aqueles que as frequentam fazem-no mais por festividade, para aparecer, do que, propriamente, pelo amor ao cinema. A diluição, a falta de base referencial, a completa ausência da cultura literária, e a proliferação dos monossílabos nos sites da internet, bem que são sintomáticos de uma crise cultural sem precedentes. O paradoxal em tudo isso se encontra na possibilidade extraordinária de se obter informações como nunca se viu antes no quartel de Abrantes.

O que reina é o império do audiovisual. A facilitação da expressão através das imagens em movimento se, por um lado, democratizou o acesso às câmeras digitais, por outro, determinou uma enxurrada de “inexpressividades”, como se pode observar nas dezenas de eventos que acolhem os pequenos filmes realizados pelo digital. Antes, o acesso à expressão cinematográfica era muito difícil. Havia a bitola 16mm, mas os custos, altos, não permitiam que qualquer um pudesse manipular a câmera, que exigia um mínimo de conhecimento técnico.

Filma-se hoje como antigamente se fazia poesias. Se, antes, as pessoas, que queriam se expressar, faziam-no pelos versos, e, quando publicados em suplementos literários ou revistas, sentiam-se revigorados, atualmente é o filme o móvel expressivo da nova geração. Bom que assim seja, mas o tempo, sempre implacável, se encarregará de reter o que presta e devolver, à lixeira do esquecimento, as tolices feitas.




A imagem é de Cão Branco, de Samuel Fuller. Seria bom soltar este cachorro numa sessão lotada numa tarde de sábado no Iguatemi.

31 agosto 2009

De coração partido




O repórter fotográfico ad hoc Jonga Olivieri (ad hoc porque, na verdade, é um publicitário tarimbado e faz um free lance para este blog com sua máquina digital) enviou mais duas fotos de dois cinemas do Rio de Janeiro: em cima as ruínas do Plaza e embaixo o Metro-Passeio (a imagem à esquerda o mostra em plena atividade e a da direita é a atual). Admirador dos cinemas cariocas, este bloguista sente o desaparecimento das magníficas salas da Cidade Maravilhosa e vê, aterrado, as ruínas do Plaza, enquanto as pipocas e as guloseimas triunfam nas salas dos complexos, quer sejam os Multiplex, quer sejam os Cinemarks (e assemelhados). No Metro-Passeio, que tem este nome porque ficava em frente ao Passeio Público, vi vários filmes, e me recordo, especialmente, de A filha de Ryan (Ryan's daughter, 1970), quando o cinema instalou projetores na bitola de 70mm. Dirigido por David Lean, com a sua habitual competência de narrador, Ryan's daughter, filmado na Irlanda, no telão do Metro-Passeio irradiou emoção pela sua belíssima fotografia a mostrar Sarah Milles com sua sombrinha sendo carregada pelo vento implacável sob os olhares argutos de Robert Mitchum e sob a batuta melódica de Maurice Jarre. Fazer o quê diante de uma sessão tão estimulante? Na saída, ir ao Amarelinho na Cinelândia para pensar o filme aos goles parcimoniosos de chopes bem tirados (aqueles chopes somente encontradiços no Rio de Janeiro). Era o que se poderia chamar de uma tarde inesquecível como matinée cinematográfica. Acredito que meu repórter fotográfico também deve ter se atirado aos pés do divino Chopp carioca (e aqui a maiúscula se faz mais do que necessária).
Tirei, e sem pedir licença, estas informações que vão abaixo, do site de Luiz Darcy, Saudades do Rio, que falam sobre o Metro-Passeio. Vamos a elas:
"O Metro-Passeio, inaugurado em 1936 na Rua do Passeio nº 62, chegou a ter 1821 lugares e, como se vê na foto, ficava ao lado da loja da Mesbla (em determinada época a Mesbla propôs arrendar o Metro para exibir sessões gratuitas para os seus clientes). O Metro-Passeio foi o segundo cinema do Rio a ter ar refrigerado (o primeiro foi o pequenino Varieté, que funcionou na Av. Atlântica nº 1080, de 1935 a 1942). É um exemplo de "art déco": o uso da verticalidade bem acentuada com suas linhas em direção ao infinito sugere um arranha-céu típico da cidade de Nova York."
E mais, e do mesmo site, uma notícia de jornal, com a ortografia da época:
"Um dos eventos mais sensacionaes do anno de 1936, foi sem duvida alguma a inauguração do Cine Metro. O Rio ganhou um de seus mais bellos e confortaveis cinemas. Deante de todos os factores que se apresentaram nesso novo cinema, não mais tornou-se crível a permissão das casas antigas com as mesmas pretensões. Foi o ponto de partida para uma remodelação, um melhoramento em regra. A cinematographia no Brasil ficou dividida em duas epocas: antes e depois do Metro".
Um comentário de Ana Lúcia no mesmo site (http://fotolog.terra.com.br/luizd:422):
"A Cinelândia é um "jardim precioso" de estilos arquitetônicos grandiosos. Há, na Praça Floriano, uma sucessão de prédios art-decó e semi-art-decó. Além do cinema Odeon (totalmente art-decó) o Metro BoaVista é um excelente exemplo deste estilo, que foi moda no Rio, mais encontrado nesta região. Os cinemas Metro foram um marco de excelência em salas de cinema, com prédios sempre muito bem projetados, em estilo sempre lindíssimo, muito acima dos outros cinemas todos, em termos de luxo e conforto internos. Mas, a mim me parece, às vezes, que o brasileiro em geral, não gosta de luxo e conforto, não gosta de ver belos prédios. Levando-se em consideração que os governantes são eleitos pelo povo e, em tese, o representam, o que se vê é sempre, na história do Rio, a substituição da tradição e da beleza pelo modernismo de gosto duvidoso. E do conforto das antigas salas de cinema pelas salinhas pequenas ou pelos grandes "depósitos de cinéfilos".
P.S: O Metro Passeio foi assim denominado em substituição a seu antigo nome Metro Boa Vista.

30 agosto 2009

"Avanti!", de Billy Wilder

Avanti!, de Billy Wilder, que aqui teve acoplado um sub-título (Amantes à italiana), comédia crepuscular de um extraordinário realizador (que, depois, ainda faria, A primeira página/The front page, 1974, Fedora, 1978, e Amigos, amigos , negócios à parte/Buddy, Buddy, 1981) sintetiza, admiravelmente, o cinema e a visão de mundo wylderianas.

Jack Lemmon é o milionário americano Wendell Armbuster, Jr, que, com o falecimento do pai ocorrido na Itália, vê-se obrigado a deixar as suas atividades para ir a este país para resolver os problemas da transferência do corpo para os EUA. O ponto de partida, antes da apresentação dos créditos, já dá uma idéia da graça e da espirituosidade do autor: enquanto um avião está parado à espera de levantar vôo, um jatinho pousa a seu lado, diminuto, a trazer Lemmon, ainda em roupas esportivas, que sobe, apressadamente, no outro. No interior da aeronave, conversa com um desconhecido e lhe segreda alguma coisa. Os dois se levantam sob os olhares estupefatos dos passageiros e se trancam no banheiro. Quando saem, Lemmom está vestido com o paletó e gravada enquanto o outro fica com as suas roupas de golfe. Dá-se a decolagem. Plano de detalhe das rodas do avião a se fechar para alçar voo. Partitura inebriante de Carlo Rustichelli. E os créditos se apresentam no espaço.

Ao chegar à Itália, Lemmom vem a saber que seu pai viera a morrer num acidente de carro ao lado da amante. E, para sua surpresa, vem a conhecer a filha dela (Juliet Mills), cuja estadia italiana também tem como objetivo a resolução dos trâmites protocolores em relação da corpo da progenitora. O conflito entre os dois se instaura mas, aos poucos, estabelece-se uma afetividade e uma relação amorosa. No final, apaixonados, Lemmom promete voltar todos os anos à Itália para se encontrar com ela - exatamente como seu pai.

Filmado in loco, Avanti! é uma comédia romântica tão engenhosa quanto inteligente. Mas, dito assim o seu argumento, apenas se pode ter uma idéia do que é realmente o filme. O mais importante nele é o tratamento dado ao tema, a maneira pela qual Wilder articula os elementos da linguagem cinematográfica, a lhes dar um dinamismo impressionante, além do mais considerando ser Avanti! baseado em uma peça teatral de autoria de Samuel A. Taylor, mas roteirizado com a energia e a esperteza de seu colaborador habitual I. A. L. Diamond

Quando vi Avanti! pela primeira vez, na tela grande do cinema, em 1974, impressionei-me pelos diálogos ironicos, envolventes, e, principalmente, pela mise-en-scène wilderiana. Sátira aos filmes viaggio in Italia, Avanti!, sobre ser uma comédia delirante, resume o cinema de Billy Wilder na sua visão do homem em conflito com o mundo e na sua peculiar esperteza de driblar as situações.

Não se tem mais, no cinema contemporâneo, uma comédia como Avanti! nem um diretor como Billy Wilder. A indústria cinematográfica americana marginalizou-o, quando, ainda em plena capacidade criativa, deixou-o sem trabalho, até a sua morte, ocorrida em 2002 (é de 1906), por longos 21 anos, considerando que seu derradeiro filme é de 1981: Amigos, amigos, negócios à parte. Wilder queixava-se amargamente da falta de oportunidade, porque aos 75, quando assina o seu último filme, ainda se encontrava em pleno vigor.

O cinema americano, após a crise de bilheteria dos anos 70, quando apostou, em sua primeira metade, nos cineastas mais arrojados e independentes, descoberto o filão guerra-nas-estrelas e a constatação de que o grande público era infanto-juvenil, concentrou-se na infantilização temática, a perder em invenção e ousadia até chegar, hoje, ao abominável cinema-montanha-russa das tomadas rápidas e dos efeitos mirabolantes.

Avanti! é um exemplo de como o cinema pode ser ao mesmo tempo um espetáculo agradável e inteligente.

Veja o trailer de Avanti! em meu outro blog: Momentos da arte do filme (http://setaroandreolivieri.blogspot.com/) E clique no cartaz para vê-lo maior.